Os limites do abuso

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Numa semana em que está se discutindo tanto os limites da comédia, ninguém parou para se questionar sobre os limites do abuso. Quando é que o abuso começa, né? É numa piada e em como ela é recebida pelo público? É só quando a vítima se incomoda? Tem que saber levar na esportiva porque também existe a liberdade de expressão? Começa quando o comediante resolve tirar sarro de uma condição de saúde e da aparência de uma mulher negra ou começa no tapa que reage a tudo isso?

Olha, eu nem vou entrar nessas reflexões todas porque o texto na verdade nem é sobre isso, eu só queria entender mesmo porque que o Will Smith tá se internando, sendo execrado por geral, teve vários filmes cancelados na Netflix, e ainda se desligou do posto de membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas se ontem mais um abusador branco foi aplaudido e premiado com o Grammy, em uma das principais premiações anuais do entretenimento americano. O Will Smith reagiu a uma “piada” feita com sua mulher e cometeu uma agressão em um evento. Beleza. Vamos deixar de fora todas as problematizações incluídas nisso em relação a ser negro e vamos aos brancos.

Em novembro de 2017, quatro mulheres denunciaram o abuso do comediante Louis C. K. e saíram num artigo do New York Times. Louis se masturbou na frente de pelo menos cinco mulheres. Depois do artigo, escreveu um comunicado dizendo que era tudo verdade e que usou o poder que tinha, através da admiração que essas mulheres sentiam por ele, para poder abusar delas, se desculpou com a família, teve alguns projetos cancelados, mas continuou na ativa, impune, e saiu agora, em abril de 2022, com um Grammy de “Melhor Álbum de Comédia” debaixo do braço. No “melhor álbum de comédia”, ele inclusive faz piadas sobre a situação dos abusos e as dificuldades que enfrentou em 2018 e 2019 depois das denúncias, brinca que se acharem os blackface que ele fez no passado a coisa piora, faz piadas sobre a sexualidade da mãe, mas ainda assim conta com mais de cinquenta mil ouvintes mensais e mais de 400.000 reproduções em suas faixas.

Quando foi que a liberdade de expressão passou a se confundir com o abuso e a humilhação? E, principalmente, com o racismo, a gordofobia, a xenofobia e a misoginia? Só ultrapassa o limite se doer em alguém? Até onde vai a liberdade de expressão nesses casos, me diz? Porque eu não aguento mais ver gente ser humilhada por risada. Pra dar público, pra dar visibilidade a tanta gente imbecil e preconceituosa, e eu não aguento mais ver as pessoas rindo dessas coisas.

Até quando vamos premiar homens brancos só porque eles abusam e depois pedem desculpas quando perdem projetos?

Vamos lembrar que só estamos discutindo nesse momento os limites da comédia porque Will Smith resolveu dar um tapa na cara de outro comediante durante o Oscar. Ninguém se preocupou com a piada. Ninguém se preocupou com a mulher negra constrangida. Se Will não tivesse dado o tapa, a piada teria passado batida, como sempre. Vocês tão preocupados é em apontar o dedo e dizer que violência é errado. Mas de que violência estamos falando mesmo?

Então, sabe, não é querer promover cancelamento, não. Mas que cancelamento é esse que só pega de um lado? Ou só de uma cor? Até quando a gente vai ter que aguentar humilhação pra sustentar a liberdade de expressão de vocês? Qual o limite disso, que que a pessoa tem que fazer pra ser cancelada por vocês? Mostrar a piroca pra cinco mulheres não é suficiente? Que colcha imensa é essa que vocês tanto passam pra branco? Precisamos separar a arte do artista, sério? Será que um cara que mostra a piroca pra cinco mulheres se recupera e se torna um novo homem? Passa a ver as mulheres de forma diferente?

Tá cada vez mais difícil ver a vida melhor no futuro, sabe. Eu tenho realmente muito pouca esperança de que as coisas vão mudar. Eu só sei que enquanto a liberdade de expressão dentro do humor precisar ferir o direito do outro ser e existir, e cometer abuso ou humilhação com alguém nada vai mudar. Porque é isso que o humor faz quando humilha e caçoa de alguém: descredita existências e modos de ser, torna as diferenças risíveis, ajudando a perpetuar estereótipos, estigmas, preconceitos e desigualdades.

Mas deve ser coisa da minha cabeça, né? Vai ver eu que tô viciada em problematizar.

Desculpa aí, viu, eu só tô muito cansada de ver abusador sendo ouvido, aplaudido e premiado mesmo.  

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