O problema é que a gente nasceu no corpo errado

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Foto: ANGELA WEISS / AFP

Corpo certo, ao que parece, é branco, de homem, cis, hetero, herdeiro. O nosso erro, é não estar no “padrão

Essa semana, uma menina de 13 anos foi proibida entrar na escola em que estuda, o Colégio Municipal Dr. João Paim, em São Sebastião do Passé, na região metropolitana de Salvador. O motivo? O cabelo da adolescente estava “inchado”. Foi o que alegou o funcionário que mandou a garota de volta pra casa sem, sequer, notificar os pais.

A adolescente com a mãe, Jaciara. Foto: arquivo pessoal

A menina estava de coque, que é o padrão do colégio (militar, diga-se de passagem). Mesmo assim, foi proibida de assistir às aulas. Ela tentou arrumar ainda melhor o cabelo para não ser mandada embora e foi em vão. A menina foi pra casa. Chorando. Com raiva de si. Do seu cabelo. Da escola.

Ao procurar a escola para entender o ocorrido, a mãe da adolescente, Jaciara de Jesus Tavares, disse que o funcionário mostrou-lhe uma foto de um modelo padrão, pra que ela percebesse como a filha deveria se arrumar pra ir pra escola. O padrão? Branca de cabelo liso. O homem em questão disse ainda à Jaciara que a adolescente deveria alisar o cabelo pra estar dentro do padrão da instituição.

E isso aconteceu só porque é uma menina negra, de cabelo afro, numa região provavelmente periférica de Salvador, a cidade mais negra do Brasil? ÓBVIO QUE NÃO.

Fosse “só” por isso (e já seria motivo suficiente pra gerar uma baita de uma revolta, ódio no coração e vontade de pregar fogo em r4c!$t@) , Jada Smith não teria sido alvo de piada escrota do Chris Rock na cerimônia do Oscar e vocês não estariam enchendo a boca pra falar mal de Will Smith. Mas, apesar de Jada ser milionária, ela e a garotinha de Salvador têm coisas em comum: são mulheres pretas. E isso é motivo suficiente pra quase qualquer pessoa se sentir no direito de humilhar elas.

Vocês… vocês não querem justiça, estão criticando Will, porque é negro, porque quem foi AGREDIDA PRIMEIRO, foi uma mulher negra (e doente, pqp!). Se fosse Ryan Reynolds defendendo a Blake Lively, se tivesse sido anos atrás o Brad Pitt defendendo a Angelina Jolie, se fosse sei lá qual casal de brankos, ninguém tava criticando.

Vocês vão vir aqui com pena da garotinha de Salvador, mas não estão realmente preocupados. Porque vocês, que se sentem brancos europeus, que estão dentro do “padrão”, que têm corpos, cabelos, status, casas, empregos, dentro do padrão, vocês ajudam o mundo a se manter machista, racista, xenofóbico, transfóbico. Vocês que dizem que a violência de Will é desmedida e que violência não resolve nada, é porque vocês nunca foram vítima de piada escrota. Na escola, no trabalho, na igreja. Vocês nunca passaram a dor de ir pra casa chorando e dizendo que odeia o cabelo que tem, o corpo que tem, as marcas que tem. É porque vocês não entendem que a primeira agressão, quem sofreu foi Jada.

Vocês me falam que eu não sou negra, porque meu cabelo é “liso”, mas desconhecem a minha origem negra, filha de negro, neta de negro, bisneta de negro, filha de uma Brasil forjado no estupro, motivo pelo qual, também tenho sangue indígena, português e sírio. Mas vocês tentam me passar como “morena”, “mulata”, “da cor do pecado” e não preta, nessa régua da negritude que vocês carregam, porque acham que estão me fazendo um favor ao dizerem: nossa, mas você nem parece negra.

Sabe esse choro da garota de Salvador? Sabe os olhos da Jada revirando de ódio e dor com a piada do Chris? Sabe o Will aos prantos no discurso do prêmio que recebeu? Esse choro era o choro do meu pai, que chorava enquanto rezava durante as três gestações da minha mãe pra que a gente não nascesse com o cabelo “igual” ao dele. Ele tinha MEDO de que a gente se “parecesse” demais com negro. Sabe por que? Porque ele sofreu o c@r4lho na vida sendo homem preto, sem estudos, no interior, filho de mãe solo, cuidando de seis irmãos. Ele não queria que a gente vivesse a mesma dor.

É uma merda todo santo dia vir aqui e escrever sobre situações como essas, porque doem demais. Doem demais. Mas eu vou continuar sangrando e chorando junto com essa menina, com Jada e com todas, todos, todes. Porque enquanto houver gente como o cara que proibiu a menina de ver aulas ou como Chris Rock, eu preciso continuar existindo e insistindo em dizer que vocês não vão nos calar. A minha função aqui, é trabalhar pra que um dia, um dia, nenhuma menina negra tenha vergonha do cabelo, da cor, dos contornos, da boca… pra que ninguém tenha vergonha de ser quem é.

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