O pau que dá em Chico, dá em Francisco…

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Um episódio simplesmente lamentável (para não dizer horripilante) agitou o noticiário alemão no início da noite desta quinta-feira, dia 17 de fevereiro, na Alemanha, início tarde no Brasil. O motivo? Falas preconceituosas no púlpito do Parlamento Alemão.

O expediente na Casa Democrática Alemã corria como o esperado quando uma pauta importante foi adiantada. O Frauenwelttag (“Dia Internacional da Mulher”), comemorado mundialmente em 8 de março, cairá em uma semana sem reuniões parlamentares. Por essa razão, o dia de hoje foi o escolhido para que um grande debate fosse instituído na Casa, de maneira a levantar sugestões, ideias, proposições e, por que não, soluções para igualar salários entre homens e mulheres, possibilitar ainda mais mulheres em posição de liderança nas empresas, diminuir a pobreza na velhice, reduzir drasticamente a violência contra as mulheres. Era um momento especial, de debate, mas, sobretudo, de respeito e de solidariedade multilateral entre todos os presentes.

Até que uma pessoa pediu a palavra e subiu ao púlpito.

Beatrix von Storch. Foto: Reprodução DW Brasil / picture alliance / dpa/ J. Stratenschulte

Beatrix von Storch, deputada e uma das vice-presidentes do Alternative für Deutschland (AfD), em brasileiro “Alternativa para Alemanha”, partido de extrema-direita, e conhecida por ter perfil “cristão conservador”, pegou esse debate e resolveu se empreender esforços somente em atacar uma colega de Parlamento, Tessa Ganserer (Bündnis 90/Die Grünen, o Partido Verde alemão). Tudo porque ela é transexual.

Tessa Ganserer. Foto: picture alliance / Geisler-Fotopress

– “Se o colega Markus Ganserer quiser usar saia, passar batom e colocar um salto agulha, não há problema algum nisso. É algo totalmente dele, privado. Ele é biologicamente e juridicamente um homem. Se ele chegou aqui pela Cota Feminina destinada ao seu partido, então isso foi simplesmente ilegal.”

E completou:

– “Um peixe não é uma bicicleta, e um homem não é uma mulher.”

Enquanto dizia isso, as outras mulheres presentes balançavam a cabeça reprovando cada palavra. E von Storch ouviu até vaias. A vice-presidente do Parlamento precisou intervir pedindo “respeito pela colega Tessa Ganserer”.

Tessa é uma das duas parlamentares transexuais eleitas no último pleito e foi acolhida por todas as presentes. Representantes de vários partidos se manifestaram em favor dela. Britta Haßelmann, chefe da cúpula do Partido Verde no Parlamento, chamou a fala da parlamentar da AfD de “abjeta” e “repugnante”. E finalizou dizendo, sob fortes e demorados aplausos:

– “Tessa é uma de nós. Ela é minha e nossa colega.”

Já Dorothee Bär, parlamentar da Christlich-Soziale Union (CSU), em brasileiro “União Social-Cristã”, já foi mais enérgica e enfatizou que quando se ouve essa fala “das profundezas”, por parte da AfD, “cria-se um sentimento de que voltamos a 1911”. Muito embora, nas palavras da jornalista da ZDF Kristina Hofmann, “as mulheres da época fossem certamente mais esclarecidas”.

Outras personalidades como o Ministro da Saúde, Karl Lauterbach, e o vice-presidente do Freie Demokratische Partei (FDP), em brasileiro “Partido Democrático Liberal“, Johannes Vogel, também se manifestaram em apoio ao que consideram uma fala antidemocrática e desumana.

Mas por que Beatrix von Storch está sendo citada por um meio de comunicação brasileiro? Para descobrir esta resposta, precisamos saber (ou lembrar) quem ela é, para além do partido.

Von Storch é uma deputada alemã bastante controversa, com alguns escândalos no currículo parlamentar, como defender que a polícia alemã abrisse fogo contra imigrantes simplesmente porque sim. Aqui, entretanto, não trataremos de suas peripécias para traçar seu perfil. Nos ateremos a dois pontos: um de ordem pessoal e outro de ordem de aliança política.

No quesito ordem pessoal, segundo a DW Brasil, von Storch é neta de Johann Ludwig Schwerin von Krosigk, que serviu como ministro das Finanças da ditadura nazista de Adolf Hitler por mais de 12 anos. Seu outro avô, Nikolaus von Oldenburg, filho de duque, era membro do Partido Nazista e da SA, que era uma espécie de “milícia” do partido. Família boa, não?

Seu nome carrega um “von”, você reparou? Pois bem, esse é um sinal claro de nobreza e seus detentores o ostentavam, de geração em geração, desde a Idade Média. Não à toa o marido de Beatrix, Sven, com quem ela é casada desde 2004, pegou o sobrenome em 2010. Quem não gostaria de ter sobrenome de nobre?

Definitivamente, eu não.

O segundo e último aspecto é a aliança política. E aqui TUDO há de ficar autoexplicativo. Você se recorda desta foto:

Foto: Reprodução/Instagram @beatrix.von.storch

Agora tudo fez sentido, não é mesmo? Toda essa palhaçada no Parlamento, nome de nobre, avô nazista, tiro em imigrante, contra “ideologia de gênero” (são os alemães que colocam entre aspas, não eu), ataque gratuito a uma colega em discussão sobre o Dia Internacional da Mulher. Quer foto MELHOR pra deixar tudo em pratos limpos? Mais claro que isso, claro, só as turmas de medicina da USP e da UFRJ e o elenco da Globo.

No nosso complexo de lambe-botas de europeu, em virtude da colonialidade a que estamos ainda expostos, completamente submersos e condicionados mentalmente, tendemos a achar que esse tipo de discurso absurdo só acontece com os filhos do Ainda Presidente, dos seus fiéis de mamata e dos seus robôs. Mas não. A extrema-direita está no mundo todo, inclusive em um dos países tidos como molde para o Ocidente em termos políticos, disseminando todo tipo de preconceito, de asneira, de discurso de ódio, todo tipo de lixo antidemocrático, racista, xenofóbico, homofóbico. Eles nem fazem questão de esconder. E riem quando alguém pede respeito à democracia. Riem, levantam e se retiram, justamente como fez a bancada da AfD na última seção de debate do Parlamento Alemão.

Coincidência com o que há no Brasil? Nem um pouco. Vivemos um momento muito parelho politicamente. Para retomar e manter a democracia, teremos que lutar por ela constantemente. Por isso, precisamos aprender. Que esse episódio nos ensine algo, inclusive com os nossos próprios ditados. Afinal, definitivamente, “pau que dá em Chico”…

Fontes:

1. https://www.zdf.de/nachrichten/politik/bundestag-ganserer-storch-hasselmann-transfrauen-100.html (ZDF heute)

2. https://www.instagram.com/p/CaF_qDDtwvT/?utm_medium=share_sheet (ZDF Instagram)

3. https://www.dw.com/pt-br/uma-deputada-da-ultradireita-alem%C3%A3-no-brasil/a-58619955 (DW Brasil)

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