Não há um justo sequer

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Os tempos são de intensa crise, e isso já nem é mais notícia. O que ganha manchetes e headlines hoje é bomba em hospital, são mais e mais inserções no efeito cascata do boicote forte e bizarro realizado pelo Ocidente para com a Rússia, no qual as empresas surfam a onda do momento no melhor estilo “todos contra um”, e, claro, a guerra das narrativas. Ocidente chama bilionário russo de “oligarca”, mas o seus bilionários chama pelo nome. Enquanto isso, a Rússia edita a versão da guerra que quer mostrar dentro do seu território. “A verdade vos libertará”, disse Jesus. Mas qual verdade? Aliás, a verdade realmente importa? Pois, aparentemente, quando entra o dinheiro, o que vale mais é a mentira.

No meio de tantas notícias de lá, e algumas de cá igualmente assombrosas, eis que surge a informação estarrecedora de que um partido austríaco estaria investindo fortemente em uma pauta considerada urgente e fundamental para os rumos da Europa e para uma “nova ordem mundial”. Antes, porém, de adentrar ao fato, se faz necessário dar um pano de fundo explicando sobre o partido austríaco em questão e a minha relação com ele.

Há alguns meses, escrevi um texto falando sobre um caso de um parlamentar austríaco defendendo o uso de Ivermectina durante sessão no Parlamento Nacional deles. Durante a fase de pesquisa para a escrita do texto, acabei descobrindo o perfil de um outro parlamentar austríaco, de nome Yannick Shetty, e, consequentemente, seu partido, o NEOS, sigla para A Nova Áustria e Foro Liberal (Das Neue Österreich und Liberales Forum, em alemão). Fundado em 2012, o NEOS é uma agremiação nova e com muitas caras novas também. Muitos parlamentares com pouca idade, como é o caso de Yannick (26 anos). São oposição ao governo do Primeiro-Ministro Karl Nehammer, que pertence ao partido de direita ÖVP (Partido Popular Austríaco, em alemãoÖsterreichische Volkspartei), o qual vencera as eleições com Sebastian Kurz, em 2019, tendo que renunciar devido a escândalos de corrupção. Por fim, o NEOS segue uma linha liberal e são pró-europa. Um partido NOVO da terra dos perdedores de guerra. Mas eu decidi seguir o partido e o político supracitados mesmo assim, porque via postagens interessantes deles e uma abordagem bem direta com seu público nas redes.

Pois bem.

Eis que estou eu catando memes na rede social de censura do Meta e, BLAM NA MINHA CARA, vem essa imagem:

(Foto: Reprodução/ @neos.eu no Instagram)

Nela, pode-se ler, em tradução livre:

“Para nossa segurança, é preciso coragem, determinação e os Estados Unidos da Europa!”

Eu fiquei estarrecido. Não entendi bulhufas. Só fiquei idiota olhando mesmo. E não queria ter entendido. Mas procurei a postagem do parlamentar em questão também. Para saber do que se tratava. E voilà:

(Foto: Reprodução/ @yannickshetty no Instagram)

Nesta foto, ele brada, em conformidade com o partido: “Europa unida! É tempo dos Estados Unidos da Europa!”

Eu juro, fiquei tão embasbacado que permaneci o dia inteiro refletindo sobre o que seria isso, sobre as implicações dessa ideia, ou melhor, dessa resolução na política externa, na economia, na geografia e, sobretudo, no campo militar. Mano, os cara nem tiveram o trabalho de pensar num nome original! É tão afrontoso que literalmente o nome do quintal do Biden com final diferente. Que bizarro.

 Muitas foram as reflexões, mas não cabe apresentar um parecer meramente passional, dada a guerra de narrativas outrora citada. É preciso ir além, de modo a construir uma visão mais ampla do que pode significar essa ideia por parte desse corpo político austríaco no meio do olho de um furacão de guerra.

E foi isso que eu fiz.

Ora, a pesquisa em torno dos “Estados Unidos da Europa” me levou a duas perguntas basilares e norteadoras, a saber:

qual a real intenção na sua criação? e por que a urgência de ser agora?

Tais questionamentos, quando respondidos, nos ajudarão a entender um pouco mais do contexto e nos permitirão visualizar os possíveis desdobramentos dessa ideia nos mais variados campos.

Vamos ao jogo. E pra isso, um pouco de História.

Em primeiro lugar, para minha surpresa, descobri com pesquisa que a ideia de uma Europa Unida e Armada não é nova. Na verdade, ela data de 1950 e foi encabeçada por René Pleven, segundo documento arquivado no Centro Virtual para o Conhecimento na Europa (CVCE), quando ele, enquanto Primeiro-Ministro francês, defendia a ideia de uma Comunidade Europeia de Defesa (CED) que contaria com Alemanha Ocidental, Itália, França, Holanda, Luxemburgo e Bélgica. A proposta era uma iniciativa para “ter controle sobre algo inevitável”, segundo o historiador berlinense Michael Lemke, se referindo à Alemanha voltar a ter um Exército. Houve protestos de todas as partes, sobretudo de comunistas e da Igreja que, veja só, achavam um ABSURDO o povo ALEMÃO ter acesso à ARMA DE FOGO novamente.

Em 1952, Konrad Adenauer, então Chanceler da Alemanha Ocidental do Pós-Guerra, desafiou a República Democrática Alemã (ou Alemanha Oriental) e assinou o tratado da CED. Houve ruído com a vizinha oriental, mas em 1954 a França, por meio de sua Assembleia Nacional, rejeitou o acordo. Foi o fracasso da CED.

Entretanto, um ano depois, em 1955, um movimento brusco acontece: a Alemanha Ocidental reorganiza suas Forças Armadas e é admitida na OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte). A reação do bloco Comunista é o Pacto de Varsóvia. Guerra Fria. O resto você já sabe.

Estas informações são cruciais para o entendimento da reinvindicação austríaca. Sabendo que o Bundestag (Parlamento Alemão) retoma a discussão acerca desse tema praticamente todo ano, e, principalmente, da colossal força política e de influência que a Alemanha detém na União Europeia, com o bônus do entendimento praticamente imediato em virtude da língua, o partido austríaco faz coro no National Rat (Parlamento Austríaco) na tentativa de convencer seus colegas políticos a fazerem pressão nos donos da Europa, para que estes façam valer a sua vontade com o poder que não têm. A versão do irmão mais novo que só vai na festa do amigo porque o irmão mais velho vai, só que envolvendo fuzil, tanque, sanção econômica, fechamento de fronteira, mais racismo e xenofobia e falsa ideia de liberdade. Típico de europeu.

Nossa primeira resposta, portanto, passa pela mesma ladainha enlatada e nem um pouco saudável que os Estados Unidos insistem em vender para o mundo como sendo propriedade sua, mas que os austríacos em questão estão ousando tentar tomar na mão grande da narrativa, que é:

a liberdade.

Assim, de modo mesquinho, cínico e aproveitador, e com o único e claro objetivo de conquistar a simpatia de seu público, usam a Ucrânia. Tudo o que está acontecendo, portanto, é só um estopim, é só a desculpa perfeita que encontraram para desenterrar o Plano Pleven, como também era considerada a CED, e tentar colocar em prática.

Os argumentos para ter uma Força Armada Unificada, segundo o próprio NEOS, são 1) uma “nova ordem mundial, com uma Europa soberana, sem precisar de permissão de outras nações para tomada de decisões de ordem política, estratégica, econômica, social e militar; 2) concentrar os gastos com a defesa e economizar bilhões de euros com isso; 3) o fim do serviço militar obrigatório, com a inserção do serviço militar voluntário, em que a própria Áustria seria notoriamente beneficiada (e eles pontuam isso); e 4) mais cooperação em todos os campos problemáticos, como monitoração do espaço aéreo, proteção contra catástrofes ou prevenção contra ataques cibernéticos.

Mas por quê? Em nome de quê? Ou melhor, em nome de QUEM? Seria para restaurar a soberania da Ucrânia, impedir a Rússia de recriar a União Soviética, como inflama a mídia hegemônica ocidental e, de quebra, proteger a liberdade do Ocidente?

Talvez. Se por Ocidente você e eu entendermos somente como Europa. Porque a ideia, nua e crua, é se livrar dos Estados Unidos, ainda que o nome da Força Armada carregue o nome dos Yankees. A ideia de Pleven sempre foi resolver todos os problemas da 2ª Grande Guerra entre os próprios europeus. A merda é que tanto DC quanto o Kremlin tinham botado o dedo na guerra e tinham explodido Hitler. A bem da verdade, a União Soviética que fez o trabalho sujo ganhando do grupamento pesado das tropas alemãs, mas JAMAIS que o Ocidente há de reconhecer isso. E nem precisa: a narrativa de vitória já é dos norte-americanos. Os grandes heróis. O que o Ocidente sempre vai esconder é que abrigou um monte de nazista no fim da 2ª Grande Guerra. E como homens importantes pros seus próprios interesses. Como Adolf Heusinger, que foi do Alto Comando da Wehrmacht, tendo acesso direto a Adolf Hitler, e que, depois da guerra, foi conselheiro para assuntos militares do Chanceler Konrad Adenauer, depois voltou para as Forças Armadas como General de 3 Estrelas, a segunda mais alta patente e, por fim, se tornou Chefe do Comitê Militar da OTAN em Washington DC. Ou ainda Wernher von Braun, o famigerado fogueteiro do Führer, que driblou o Tratado de Versalhes, o qual era um Tratado de paz da Tríplice Entente (Reino Unido, França e Rússia) no Pós-1ª Grande Guerra com sanções, restrições e imposições à Alemanha, como o impedimento de possuir Forças Armadas e aviões militares. O jovem engenheiro, portanto, não hesitou em atender o pedido do Führer para aprimorar o míssil V-2, que havia sido projetado por ele próprio anteriormente, já que no pacto assinado em Versalhes nada constava a respeito de mísseis ou foguetes. 9 anos mais tarde, o V-2 seria produzido em série. No instante em que percebeu, porém, que o Reich estava caindo, desertou para estar finalmente “do lado dos vencedores”. Após tudo isso, seu talento foi aproveitado. Anos mais tarde, já naturalizado norte-americano e com maciço apoio político e financeiro, ele foi vital ao impulsionar a corrida espacial e liderar o projeto do Saturn V, superpotente foguete fez o famoso voo Apolo 11 para a lua. O “Missileman” americano, sem o qual nada disso seria possível ou mesmo imaginável. E ainda falta Kurt Waldheim. Mas guarde este nome. Deste falaremos mais à frente.

(Fotos: von Braun e Heusinger. Reprodução: picture-alliance/dpa; Twitter)

O fato é que, veja bem, os europeus jamais conseguiram se desvencilhar dos Yankees. E viram sua influência aumentar monstruosamente em todo o globo, em todos os campos. Aliás, não há como negar: quando você faz duas cidades desaparecerem do mapa com bombas de destruição em massa, o jogo muda de patamar. Não à toa, Putin, na guerra atual, usou do soft power do campo da narrativa pra colocar a cartinha do “nuclear” em jogo. O mundo trancou o cu. Inclusive o Biden. Ou tu acha que num deve ter uns mísseis apontados pra DC lá de Cuba agora? Pode até não ter, mas seria a pintura de situação perfeita pra trazer o ditado “vingança é prato que se come frio” pra realidade.

Bom, eles não conseguiram se desvencilhar até agora. Na visão dos austríacos, caiu NO COLO da União Europeia a chance perfeita de fazer o que Pleven queria: unificar todo o solo europeu militarmente, em tratado parecido com o da OTAN, de modo “a proteger a democracia e a liberdade dos estados europeus”. Aqui, a nossa segunda pergunta é respondida: por que agora? Porque convém.

Tudo muito lindo, tudo muito colorido. Parece até que eles querem defender a Ucrânia. Mas só querem descer o sarrafo nos EUA mesmo. Dizer, no bom e velho Brasileiro:

“Quem falou que a boca é tua, rapá?”

Porque, veja bem, europeu num tem melanina, num tem carne na boca prum beijo molhado, num tem praia, num tem emoção, num tem porra nenhuma, mas observa bem. E sabe roubar as coisas dos outros como POUCOS nesse planeta. Nada como inventar uma guerra no meio de uma outra guerra pra se livrar dos grilhões dos filha da puta que sempre venderam o pó pro mundo todo. O plano é perfeito.

A merda é que quem deu a ideia foi justo quem? Justo a Áustria.

Kurt Waldheim.

Lembra que falei pra guardar o nome do cara? Pois bem. Ele é o teto de vidro da Áustria. Pinochet no Chile, Franco na França, Mussolini na Itália, Salazar em Portugal, Hitler na Alemanha, Bolsonaro no Brasil. Esse arrombado aí na terra dos pianista doidão de ópio.

Lutou na SA, força de milícia similar à SS, grupo paramilitar de elite de Hitler, na 2 ª Guerra. Ao fim do conflito, esse passado foi tão esquecido que Waldheim foi escolhido pelos Aliados como Secretário-Geral da ONU e, pasme, PRESIDENTE DA ÁUSTRIA. Com direito a página de honra nos anais da ONU. Como presidente, virou pária, nem preciso dizer. Mas OLHA O NÍVEL de cuspe que o Ocidente faz com a gente: “engole nazista no seco aí, seus pela saco!” Foi esta mesma Áustria que teve a pachorra de querer agora um Exército Europeu. Dá pra acreditar?

 (Foto: Waldheim em trajes nazistas. Reprodução: AP)

Não podemos esquecer que europeu faz tudo parecer muito bonitinho. A especialista em tecnologia, geopolítica e tecnologia militar alemã Ulrike Franke, membra e uma das líderes de tecnologia do Conselho Europeu para Relações Estrangeiras (ECFR, na sigla em inglês), por exemplo, escreveu um artigo falando sobre “equívocos propositais” no entendimento do conceito do “Exército Europeu”. E cumpre bem seu papel.

Ela argumentou que todos, ao ouvirem essa expressão, acham que a Europa quer se armar e acabar com os EUA e até mesmo com a Rússia, mas que não é bem assim. “O termo ‘exército europeu’ tem a intenção de inspirar’”, disse ela, e eu juro que estou tentando entender que tipo de inspiração ela quer que eu tenha com esse termo. De todo modo, ela usou de suas armas argumentativas. Disse que Macron já pontuou a necessidade de se “defenderem de China, Russia, e até dos Estados Unidos”, embora não estivesse falando militarmente. Ele falava, sim, segundo Franken, de grandes poderes interferindo nos assuntos europeus. Ou seja: ela deu a entender que eles só querem ter poder de decidir se vão atacar a Rússia com a “irmã” Ucrânia ou não, sem precisar dar satisfação pra ONU ou Estados Unidos, entre outros assuntos europeus de ordem particular.

Mas eu sei que você, assim como eu, também tá sentindo que tem merda aí.

Percebe que não tem santo nessa guerra? Nesse solo, nessa guerra, nesses interesses mesquinhos. E isso não quer dizer, de modo algum, que Putin está correto no que faz e ainda vai fazer. Ao contrário.

 No fim, é país de eleitor de nazista, pedindo um Exército Europeu pra ajudar nazistas e racistas a enfrentar um ditador escroto e narcisista inconsequente numa guerra idiota, desigual, e sem sentido. E talvez, me permito divagar, pelo simples orgulho de dizer de novo, depois de muito tempo,

“ganhamo, porra!”

Afinal, quanto tempo faz que a Áustria num ganha alguma coisa? Talvez desde o Império Austro-Húngaro. É possível que vença hoje alguma competição de quem come mais salsicha no estacionamento do mercado da esquina. Se bem que se fizer um desse na rede Guanabara aqui numa Nova Iguaçu, tchau Áustria. Tudo isso foi pra te dizer, portanto, que, quando lembrar dessa guerra, dessa merda toda, lembre-se sempre também que não há um fucking justo sequer.

Fontes:

https://www.neos.eu/aktuelles/neos-blog/europaeisches-heer-jetzt
(Site oficial NEOS)

https://www.sueddeutsche.de/meinung/oesterreich-nehammer-nato-neutralitaet-1.5542969
(Süddeutsche Zeitung Online)

https://www.dw.com/pt-br/1952-tratado-da-comunidade-europeia-de-defesa/a-325017
(DW Brasil Online)

https://www.cvce.eu/content/publication/1997/10/13/4a3f4499-daf1-44c1-b313-212b31cad878/publishable_fr.pdf
(Documento de Declaração da Comissão Europeia de Defesa – CVCE)

instagram.com/p/CapVkDKgr5N/
(NEOS Instagram)

https://www.dw.com/pt-br/1952-tratado-da-comunidade-europeia-de-defesa/a-325017
(DW Brasil Online)

https://www.dw.com/pt-br/wernher-von-braun-um-engenheiro-entre-a-guerra-e-o-espa%C3%A7o/a-49672889
(DW Brasil Online)

https://www.cia.gov/readingroom/docs/HEUSINGER%2C%20ADOLF_0006.pdf
(Documento da CIA sobre Adolf Heusinger)

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2007/06/070614_kurtwaldheim_morterg
(BBC Brasil Online)

https://ecfr.eu/article/commentary_the_european_army_a_tale_of_wilful_misunderstanding/
(Artigo Ulrike Franken – Conselho Europeu para Assuntos Estrangeiros)

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