“Cobrir as nossas vergonhas”

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OscarPereiradaSilvaAcervodoMuseuPaulistadaUSP

Saiu numa matéria no Universa UOL: uma mulher que foi advertida pela síndica do prédio quando saía de maiô de casa antes de ir para um bloco de carnaval.
Gente RISOS

O argumento foi que o prédio era “de família”, tinha regras e costumes rígidos. E que seria muito constrangedor uma família de moradores vê-la com a roupa que ela estava. Junto ao recado de “precisamos conversar!”, à uma e quarenta e cinco da manhã (pois o assunto era urgentíssimo, né?) A síndica enviou uma foto do circuito de segurança do prédio, em que a moradora era vista de maiô no elevador. O que será que seu filho de cinco anos pensaria ao ver uma mulher vestida de coelho e usando maiô no prédio? Acho que a preocupação é mais com os homens adultos mesmo, né?

Eu não sei vocês, mas eu acho isso muito assustador. Quer dizer que, além da gente ter medo de estupro, de agressão, de abuso, de assédio e mil violências na rua por causa da sexualização e consequente inferiorização de nossos corpos, também vamos precisar começar a nos preocupar em não chocar famílias.

RISOS
FRANCAMENTE, NÉ, MINHA GENTE

O que eu sei é que as normas de um condomínio não podem interferir no ir e vir de seus moradores, muito menos na maneira como se vestem, mesmo que visem a boa convivência e o bom relacionamento entre eles.

Até quando a gente vai precisar se explicar pelo nosso corpo? Até quando vão nos julgar e nos culpabilizar pelo que vestimos ou pela quantidade de pele que expomos? Será que um homem sem camisa seria advertido no mesmo tom e da mesma forma? A resposta, vocês já sabem.

A gente precisa derrubar essa ideia da nudez associada sempre a sexo, porque é essa a raiz desse julgamento e condenação que sempre recebemos. É por causa dessa ideia de que devemos esconder nossos corpos nus e seminus, principalmente para nos proteger da violência dos homens, que passamos nossas vidas a odiar nossos corpos, sem olhá-los no espelho, sem conhecê-lo que terminamos por entender a nudez e a exposição do corpo como algo errado e digno de medir o nosso valor.

Cês sabiam que o termo “periguete” vem de “estar a perigo”, que significa “estar necessitando de sexo ou de dinheiro”? Pois é.

O fato é que é 2022 e a gente ainda tá pensando na ideia de “cobrir suas vergonhas”, presente na Bíblia e citada por Pero Vaz de Caminha, em sua carta da invasão do Brasil (também conhecida anteriormente como “carta do descobrimento”, na época em que ainda achávamos que o Brasil tinha sido descoberto) em 1500, ao se deparar com os indígenas que aqui estavam.

Eu sempre me lembro do julgamento de Mari Ferrer, e fico pensando o dia que eu tiver que passar por alguma coisa dessa, como é que eu, que trabalho com nudez e exponho meu corpo há anos, serei julgada.

Essa resposta nós também já sabemos.

O que eu posso dizer hoje, do alto da posição de alguém que teve que mudar o guarda-roupa inteirinho pra poder conseguir ter respeito e algum crédito pra trabalhar numa cidade como São Paulo, e como alguém que ainda sofre assédio todos os dias esteja de burca ou de shortinho, é que, agora, do alto do meu privilégio de trabalhar de home office, eu é que não vou deixar de usar o que quero pra que me respeitem ou pra que parem de me violentar.

Porque a culpa nunca foi do meu corpo e nunca será.

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