Áudios do STM: o futuro pelos retrovisores dos blindados

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Por: Ana Elisa Santiago e Guilherme Lemos

Neste domingo (17) veio à tona a existência de mais de 10 mil horas de áudio do Superior Tribunal Militar (STM) entre os anos 1975 e 1985. Trata-se de gravações de sessões secretas do STM em que ministros militares aparentemente incrédulos debatem sobre a ocorrência de tortura proferidas por agentes das Forças Armadas e demais órgãos da repressão contra presos políticos.

Apesar do ineditismo com que o material é apresentado pela imprensa, é preciso lembrar que as torturas durante o regime militar (1964-1985) são reconhecidas e amplamente documentadas, sendo inclusive usadas para a fundamentação de indenizações aos familiares dos mortos e desaparecidos, ainda que Bolsonaro e seus seguidores insistam em não dar o devido reconhecimento e que os militares que compõem o atual governo afirmem publicamente que torturadores daquele período sejam “heróis” nacionais, como é o caso das declarações do general e vice-presidente Hamilton Mourão.

No entanto, os áudios publicizados até aqui espantam a quem esperava apologias abertas à tortura ou mesmo verbalizações que considerassem a prática essencial para a manutenção do regime. Pelo contrário, na seleção feita pelos jornalistas temos ali ministros militares muito “preocupados” com as “possíveis” práticas de “sevícias” (maus-tratos) realizadas por agentes do Estado, as quais deveriam ser apuradas e investigadas de forma adequada. Se fechássemos os olhos nesse exato momento, poderíamos pensar que o país vivia naqueles tempos uma democracia plena e que casos de tortura eram a excessão à regra. 

A tortura não era exceção. Tortura era regra. Eles sabiam disso. Todo mundo sabia.

Nessas 10 mil horas de áudios, certamente também devem haver falas das mais abjetas, que não foram divulgadas (ainda). Mas nem precisaria, pois o presidente tem o costume de repeti-las com frequência, inclusive oferecendo saudações honrosas aos que praticavam a tortura. O vice-presidente, por sua vez, debocha até mesmo da necessidade de revisitar este passado tão próximo: “apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. [risos]. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”

Fonte: Instagram @albertobenett
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A questão não está no ineditismo (falsamente construído) destes áudios. A questão é qual a finalidade da seleção que está sendo amplamente divulgada, ou melhor, como agentes-chave do processo político atual têm utilizado tal material para alavancar suas candidaturas? E aqui podemos apontar alguns caminhos para análise. 

Estamos em ano eleitoral e chegamos até aqui com um cenário de aparente desgaste da imagem das Forças Armadas vinculadas à figura de Bolsonaro. Cisões internas no Exército são fabricadas para garantir que exista um distanciamento seguro entre a instituição e os militares que ocupam cabeça, tronco e alma do atual governo. O objetivo é manter o verniz da instituição militar como justa, honesta e incorruptível. Tudo o que difere desses adjetivos, é tratado como exceção. Inclusive, recebe manifestações enérgicas de repúdio. Vide todas as vezes que alguém do Exército veio a público rebater falas do presidente. Ou todas as vezes em que generais renunciaram aos seus cargos por, supostamente, não estarem alinhados com a política de Bolsonaro, figura que a grande maioria deles conheceram e se tornaram amigos há mais de 40 anos. 

Este é o caso do general Santos Cruz que já em 2019  desligou-se do governo por supostas divergências com Carlos Bolsonaro, consolidando-se como “crítico” à alma autoritária e corrupta de Bolsonaro e sua família que insistemente tentariam arrastar as Forças Armadas para a política (processo realizado até aqui com participação ativa do próprio general). No dia 18/04/2022, o general admitiu a possibilidade de se candidatar à presidência pelo partido Podemos, mas antes disso ele usou o episódio dos áudios do STM para, mais uma vez, fabricar sua oposição à Bolsonaro: “A tortura é imoral e errada, seja quando for. Não pode ser aceita. Você não pode nem aceitar nem fazer apologia à prática. […] Era um ambiente político problemático em que a ideologia e o fanatismo colaboravam. Houve violência no processo e negar é besteira”, para logo emendar que respeitaria a decisão de seu partido em eventualmente apoiar a candidatura de Bolsonaro, mas que ele pessoalmente não firmaria “de maneira alguma” tal apoio. O timing para lançar essa candidatura (ou para declarar o interesse de lançá-la) não poderia ser melhor. Um dia após a divulgação dos áudios.

Estejamos atentos. De um lado, temos a divulgação parcial do material do STM com militares moderados, de outro temos  militares vestindo a carapuça de autoritários que riem de casos de tortura e dizem não estarem preocupados com o assunto. Em ano eleitoral, nada é coincidência e nem é por acaso. Existe uma narrativa sendo criada. A divulgação destes áudios reitera a versão de que “nem todo militar”, como tem se estruturado a própria candidatura de Santos Cruz, o general moderado, democrático, anti-Bolsonaro e paladino do combate à polarização que “assola esse país”.  É muito sintomático que a imprensa, mesmo os meios mais progressistas, esteja divulgando apenas as falas moralizantes de militares que aparecem como defensores da integridade física dos prisioneiros, comprometidos com o julgamento dos seus pares que cometeram tais atos (o que nunca veio a acontecer). 

É preciso dizer que a direita já percebeu que existe um eleitorado que precisa ainda ser conquistado, enquanto a esquerda já dá a eleição como ganha, e no primeiro turno! É cedo para cravar qualquer análise. Não estamos aqui para prever o futuro, mas já é possível esboçar alguns cenários. A terceira via vem surgindo de onde menos se espera e é preciso observar as narrativas que estão sendo construídas há algum tempo na mídia, especialmente no que se refere aos militares e suas articulações (não tão evidentes) com forças políticas e demais instituições, como é o caso do Judiciário, em especial quando se trata da Justiça Eleitoral

Não é possível comprar essa história. Qualquer tentativa de ruptura com este governo não pode ser mediada pelos próprios responsáveis pela fabricação da candidatura de Bolsonaro à presidência ainda em 2014. Mais do que construir e apoiar candidaturas, neste momento, é preciso atentar e desconstruir  toda e qualquer estratégia das Forças Armadas para impor uma narrativa em que apareçam como responsáveis por garantir o funcionamento das instituições e o estado de direito no Brasil. É preciso refutar desde já as tentativas de vender a imagem de que a instituição e seus atores estão sob ataque, como parece delinear o episódio dos áudios do STM em que por meio de uma inversão cognitiva torturadores são apresentados como vítimas e generais que construíram Bolsonaro politicamente passam por opositores ferrenhos ao seu governo.  

A memória, seja ela de curto ou longo prazo, ainda é um campo de batalha importantíssimo. E os militares sabem muito bem que é neste campo que o futuro pode ser definido.

Ana Elisa Santiago é doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal de São Carlos e desenvolve pesquisa sobre a presença militar em operações de paz da ONU. 

Guilherme Lemos é mestrando em Antropologia Social na Universidade Federal de São Carlos e realiza pesquisa sobre Forças Armadas no Brasil.

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