Anatomia de um escândalo

Leitura: 7 min
Divulgação Netflix

AVISO:

Pros sem-terapia doido do spoiler, já aviso que esse texto pode conter spoilers. (A janela oficial e moral de spoiler é de uma semana e já se passaram dez dias, vão se tratar ou simplesmente não leiam!)

Mais uma série bombada da Netflix e lá fui eu ver porque o tema me interessava. A série retrata o caso de um homem público, da vida política, que subitamente é acusado de estupro pela ex-amante. Então é estupro sendo discutido dentro do âmbito de um relacionamento, mesmo que já terminado. No mínimo um assunto interessante e que deveria estar sendo mais discutido.

Vivemos o tempo todo numa sociedade que nos diz o quão permissivo é o amor, o que muitas vezes se transforma em anulação, e disso eu sei falar muito bem: passei a vida me anulando achando que amar era isso, se fundir ao outro, ceder bastante e me tornar quem o outro queria que eu fosse, além de aceitar dele tudo que era humanamente possível por achar que era assim que “as coisas eram feitas” e que aquilo era tudo que eu merecia. É muito mais fácil ser convencida de ser alguém difícil de ser amada, do que ser convencida de que é alguém SUPER FÁCIL de ser amada, numa sociedade que nos ensina a nos odiar o tempo todo.

A série se passa quase toda em flashbacks e cenas do julgamento no tribunal, mas tem mesmo como linha principal a grande e complexa discussão sobre consentimento. Afinal, o que é consentimento? Onde começa e onde termina? Quem determina?

O que fica muito nítido para mim desde o início na série e também, infelizmente, na minha própria vida, é que entre homens e mulheres, definitivamente, nós falamos de lugares completamente diferentes. Uma frase do último episódio resume bastante coisa:

“Com frequência eu imagino como deve ser saber que não importa a maneira como você se comporte, você será sempre desculpado e perdoado”.

E ser mulher nunca foi sobre isso, quem dera, né? Ser mulher é dois pesos, duas medidas o tempo inteiro sendo jogado na nossa cara e nos nossos corpos.

Enquanto uma mulher passa todos os episódios sendo desacreditada e tentando provar que foi estuprada pelo amante, tendo que contar e relembrar repetidas vezes e em detalhes o que lhe aconteceu, o homem é visto como vítima de uma chantagista implacável, uma dependente emocional e passional, que armou para cima dele, esse grande coitado que não entendeu a mensagem que alguém lhe passou – a de que não queria transar, por exemplo.

Sabe um negócio que me incomoda? Ter que reviver e descrever em detalhes toda vez que vou contar pra alguém sobre uma agressão sofrida. “Tá, mas o que ele fez exatamente?”, me perguntam como se fosse a coisa mais tranquila do mundo, e eu sempre preciso responder detalhadamente pra que aquela pessoa, naquela concepção de estupro/abuso/violência dela vá validar o que eu vivi e aí sim, se compadecer da minha dor pela violência sofrida. E esse acaba sendo já outro tipo de violência.

“Ah mas tem mulher que finge e arma mermo”, tem sim, mas isso não deveria invalidar o que as verdadeiras vítimas dizem. Isso não devia fazer com que elas tivessem que provar o que sofreram o tempo inteiro. Isso não devia fazer com que elas fossem julgadas pelo que são, pelo que vestem e pela forma que agem. O nome disso é cultura do estupro. Uma cultura inteirinha, super tradicional, que tenta colocar nossos corpos como culpados das agressões e violências que sofrem, sejam elas sexuais ou não. Mas num corpo que vive a ser sexualizado, não é só sobre sexo que tudo se resume? (A pergunta é retórica)

Fato é que devia ser simples entender a palavra não, mas o problema é que, além desse mundo e dessa sociedade permissiva que construíram para si mesmos e onde nasceram, a maioria dos homens escuda-se na justificativa de só conhecer ou compreender o aspecto verbal da palavra, como se só quando gritássemos um NÃO bem grande e bem redondo é que eles entendessem que era pra parar o ato sexual ou quaisquer outros tipos de abuso, assédio e violência que eles praticam conosco. Tadinhos. Uns coitados. A gente é que não sabe se comunicar direito.

Um dos principais argumentos usados pela defesa do homem é esse: de que a mulher não verbalizou o não durante o ato. Não sei vocês, mas eu muitas vezes quis verbalizar um não sem conseguir, e mesmo que meu corpo tivesse completamente contraído, mesmo que eu tremesse, mesmo que eu continuasse por medo, nunca “entenderam”. Tadinhos. Eu é que não me comuniquei direito. Mas como é que a gente se comunica com alguém que sempre teve direito a tudo, sendo alguém que só dançava conforme a música, sem nem saber que era a música errada que tava tocando? Faz muito pouco tempo que eu me dei conta de que não precisava de um homem nem de um relacionamento pra ser feliz, e menos tempo ainda que eu descobri que meu prazer importava e que eu tinha tanto direito de gozar quanto o homem. Há mulheres ainda presas a essas noções, ainda se preocupando mais em agradar e ter um homem ao seu lado do que estarem sozinhas e amando a si mesmas incondicionalmente. É pra elas que eu escrevo.

Mas então, é 2022 e ainda precisamos fazer campanhas publicitárias para que homens entendam que “não é não”, como se isso não tivesse sido ensinado nas escolas, como se eles não tivessem aprendido o idioma, como se não conhecessem o suficiente essa palavra de origem latina, que “também gerou ‘no’ (italiano e espanhol), ‘nò’ (corso), ‘non’ (galego), ‘nu’ (romano), ‘nein’ (iídiche) e outras negações em línguas românicas (também conhecidas como línguas latinas), que derivam do latim”, conforme escrito por Gabi Monteiro, em artigo sobre a origem das palavras “Sim” e “Não”, para a revista SuperInteressante.

Eu quis colocar essa definição etimológica aqui pra gente entender que essa questão não se resume à semântica de um termo da língua portuguesa. É sobre uma prática. Sobre um pacto dos homens, entre os homens e em prol dos homens. O mundo sempre foi deles. Eles sempre tiveram mais direitos, mais oportunidades, melhores salários, mais gozadas. Não é que seja uma competição, na real, era só pra gente ter oportunidades iguais. Era pra gente ser visto como igual, e não diferente. E não um menor que o outro, mais fraco, menos crível, mais barato. E a compreensão do “não” e da noção de consentimento vem disso.

Na série o personagem homem-branco-cis-hetero (ele sempre!) argumenta o tempo todo estar em sintonia com a vítima, pois os dois eram amantes, e já tinham suas práticas e acordos subentendidos, RISOS CHOROS. O típico pensamento de homem que acha que por estar com alguém passa a possuir aquela pessoa, tendo direito perpétuo sobre o corpo dela e seus desejos. A boa e velha noção de amor posse que tanto fudeu a minha vida.

Ao longo da série a gente entende, nos flashbacks do homem-branco-cis-hetero, o quanto ele foi criado pra ser estuprador. O quanto ele naturalizou o fato de ser homem, branco e bem-sucedido, a fim de usar isso como vantagem para cometer quaisquer atos que tivesse vontade, com o poder de sempre poder se desculpar depois caso algo viesse a acontecer.

Nós somos sempre as loucas, passionais, descontroladas, histéricas. Eles, uns coitados que ainda estão aprendendo, mas seguem errando e se desculpando todas as vezes, mas só mesmo porque foram descobertos.

Então, assim, um cara como o personagem da série, que comete um estupro e ainda duvida do que seja um estupro ele não vê o mundo como eu. Não é um engano ou uma falta de compreensão. É falta de esforço. Essa é a zona de conforto deles. Ele não me vê como igual, ele acredita ter um poder sobre mim, ele acredita ser maior e melhor do que eu, mais forte, e o mundo, definitivamente, mostra e reafirma isso para ele o tempo inteiro. Ele já nasceu num mundo em que era feio ser mulher bêbada, mas homem não. Nasceu num mundo em que não precisou ser ensinado a fechar as pernas quando se sentasse, a fim de proteger a si mesmo e a sua imagem. Ele não nasceu num mundo que faz com que você se odeie e odeie os outros, não nasceu num mundo que te exige ter filhos, mas que te desqualifica e o faz ter menos direitos e acessos por tê-los; não nasceu nesse mundo que sexualiza o seu corpo o tempo todo, te assedia na rua e te filma escondido no provador de uma loja, mas que te cospe quando você resolve falar e gostar de sexo, te subjuga quando você usa um decote ou uma saia curta, e mais ainda quando resolve ficar nua, e te culpabiliza quando você tenta ser livre. Ser livre, por exemplo, é querer gozar. É saber que gozar é um direito. Na hora que eu quero, não na hora que o homem quer e eu tenho que estar disposta.

Mas eles não estão dispostos a entender que o mundo não é deles e que nossos corpos só pertencem a nós. Pra quem nasceu com a vida ganha, qualquer não é visto como perda, esse não que eles tanto se recusam a entender.

Eu estou disposta a explicar e a gritar a plenos pulmões para que entendam. Porque eu não sou posse de ninguém e jamais vou ser o que esperam de mim. Tampouco farei coisas para agradá-los por medo de ficar sozinha. Não me anularei mais. Mesmo que isso não me impeça de sofrer nada, muito menos de ser morta. Todo santo dia. 

Não é não, e se você não entender, espero eu que nunca precise, aprendi que a solução é jugular e virilha. RISOS CHOROS

Não vou mais aceitar ser taxada de louca, quando loucos são eles, que se acham melhores que nós e nesse direito de nos violentar o tempo todo.

Melhorem

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