A Xuxa de cada um: racistas somos todos

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Foto: Matheus Cabral

A gente condena Xuxa e Bial por usarem o argumento do “contexto” para desviar da acusação de racismo. Primeiro que eles, a geração deles, não entende racismo como a nossa. Para eles, o racismo é uma AÇÃO, que condiciona um crime a ser tipificado e punido.

Já eu, na minha geração, entendo o racismo como algo ANTERIOR a ação, como uma CARACTERÍSTICA da forma de pensar humana, RESULTADO de uma educação e socialização num contexto ocidental racista. De modo que NINGUÉM NASCE racista, mas se torna, mediante a socialização num contexto racista.

Por isso, educação e leitura liberta a pessoa do racismo, enquanto a ignorância o aprofunda. Daí, que minha geração entende que inclusive o racismo deve ser pauta para terapia e ajustes no campo subjetivo. Porque meu “eu” se define hoje com o repertório racista que tenho e, sem ele, eu não acesso à minha identidade plenamente. Ou seja, sou ontologicamente racista, e vou morrer racista.

Porque você não é racista na hora que comete o crime de racismo, você já era racista ANTES. Internamente, no teu subjetivo. Você, ao praticar homofobia, já era construído homofóbico ANTES. Não apenas na hora que cometeu o crime. Antes. Já somos adoecidos. O crime só traz isso a tona.

Bial e Xuxa não pegam essa fita. Mais profunda que a fita que eles entenderam no tempo deles. Isso não os isenta de nada. Mas, quero contar uma coisa, que vi no início da década de 1990. Uma família grande, muito grande, de protestantes. Todos negros, alguns poucos brancos. Talentosos na música eclesiástica e erudita, desfrutavam de grande status na comunidade protestante que eu pertencia.

Eram, no entanto, pessoas que faziam diferenciação entre eles e os “outros” negros. Condenavam severamente o samba, o candomblé, as tradições africanas, o modo de falar, o corpo negro nu, chamavam os “outros” de perdidos, vagabundos, eram, na essência, racistas.

Por isso o contexto é relevante, e uma análise sem ele é punitivista e superficial. Essas pessoas negras passaram por longos períodos de suas vidas oprimidas, sem vozes que as representassem no Brasil ou no Rio, ou nos seus lugares e vidas. Elas tiveram que sobreviver diante da chibata moral de uma sociedade branca e eugenista.

Se meteram numa religião de brancos e esperavam, em tudo, reconhecimento destes brancos. Se tornaram exemplares em todas as coisas. E abominavam, como os brancos que lhes aprovavam, os negros que não se encaixavam. Buscaram a origem do seu nome “europeu”. Não gostavam de envolvimento com pessoas da favela. Gostavam de ordem e militarismo.

No entanto, antes de tacar pedra neles e chamá-los de “capitães do mato”, VEJA O CONTEXTO. Aqui em Portugal, por exemplo, não temos movimentos sociais combativos como no Brasil. Negros, mulheres e LGBTs muitas vezes — e imigrantes — sofrem calados e buscam alguma aprovação da sociedade para viver. Porque precisam viver. Pagar contas, sustentar criança, não morarem na rua.

Esse elemento não é visto pela geração de vozes hoje no Brasil, ao menos as mais privilegiadas nos movimentos, porque essas pessoas não vivem mais NESTE CONTEXTO. Porque o CONTEXTO mudou. E hoje podem mandar brancos tomarem no cu, mas, antes, esse não era o CONTEXTO.

O CONTEXTO importa.

Pessoas negras, protestantes, hoje, tem a opção de se reconciliarem com os irmãos da teologia africana e do candomblé. De incorporarem as práticas, culturas, o samba, inclusive é este o tempo em que um pastor negro entra na Sapucaí.

Mas isso,

HOJE.

Hoje uma família de negros cristãos pode fazer autoanálise sobre seu auto-ódio. E recorrer a leituras mais elaboradas para que não incorram no erro daquela família, logo ali, em 1990. Um branco se sabe racista. Em 1990, em 1982, em 1500. Mentira se disser que não.

Mas o contexto onde ele está inserido não o educa. E ele não se constrange por si só. Ele comete o erro, e no tempo em que comete, até sabe que é errado, mas é, no entanto, aceito. Porque é o contexto do tempo.

Qualquer análise sociológica séria leva em consideração o contexto do tempo. E não se julga o passado pelo presente. O que Xuxa deve fazer é estudar. Reconhecer os erros. Mudar o seu curso. E nem digo isso pra gente ver, pras “redes” verem. É pra ser justa. E morrer em paz. Se for possível.

O que devemos fazer é olhar pra nós mesmos, e ver se não estamos indo no mesmo caminho. “A coisa tá preta” é uma expressão que vez ou outra, eu uso.

Paro, olho pra mim, e digo: puta merda.

Demora, queridos.

Cabeça da pessoa não é computador que tu dá enter e deleta. Demora. O racismo é sempre o racismo. As formas de combate a ele diferem no tempo, pela menor liberdade que se tinha, e por isso, mais pessoas erravam, pois não viam impedimentos.

Hoje defendo que sejamos radicais no antirracismo. Se possível, com luta armada e o escambau, salve Black Panthers de AK-47. Porque tem gente que só toma jeito se tu der um 220. Em todo caso, a régua que mede aqui, não mede século 20.

Li Monteiro Lobato. Não leio mais. Não vou retirar da literatura brasileira. Mas vou incentivar romancistas negros, e falar deles, e esperar que eles, pela sua obra e arte, façam Lobato parecer medíocre. Aos meus filhos, vou ler Lobato. Mas vou ler Frantz Fanon. E vou dizer onde Lobato errou. Tem que ter os dois lados, pra criança não crescer plástico bolha, igual essa geração.

O que não pode hoje é branco dizer que não sabia.

HOJE, no CONTEXTO de hoje, quem faz isso é safado. É só soco no baço e tapa na cara. HOJE.

Naquele tempo também, vai.

Mas as vozes, elas vieram. Pessoas morreram. Pessoas lutam. Então, HOJE, há um espaço que antes não tinha. Hitler, por exemplo. E muitos presidentes americanos. E brasileiros. E seu vizinho. E você. Sabiam que estavam sendo errados e racistas. Uns foram pegos, outros não.

Mas o alemão comum que acreditou naquele discurso, ele foi socializado naquilo, ele se perdeu. Porque não havia uma outra voz eficaz para dar-lhe uma escolha. E isso é o fascismo. A retirada de escolhas de conhecimento.

É complicado, queridos.

Tudo vocês definem como passar pano. Mas essa família negra, hoje tá liberta. Alguns. Outros seguem apoiando Bolsonaro. E devem sentir demasiada vergonha do tempo em que fizeram isso com seus irmãos. Reflita.

No fundo, só a educação liberta.

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