Bem-comida

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Toda vez que eu sou “bem comida” – o que infelizmente ainda é algo raro e diferente na minha vida e de muitas outras mulheres cis – eu fico muito reflexiva sobre o quão pouco a gente aceita achando que é só isso que merece.

Eu não devia ficar tão surpresa em ser bem comida, eu não devia ter como um evento raro na minha vida estar na cama com alguém que me faz gozar horrores e que está disposto a desvendar o meu prazer, mesmo que em prol do próprio. Porque na real o pulo do gato taí: quanto mais prazer você der pra tua parceira, mais prazer você terá. Quanto mais prazer a gente sente, mais o nosso corpo se abre pra esse momento do sexo. O sexo é pra ser uma troca, mas essa troca não é exatamente um chumbo trocado, uma troca realmente justa, porque estamos falando de lugares completamente diferentes.

A gente tem que lembrar que o momento do sexo ainda é muito complicado pra muita mulher cis por aí. A gente se acostumou a não gozar; a gente aprendeu desde cedo a fingir orgasmo; a gente não é ensinada a se conhecer; a gente é estimulada a não se tocar e ainda deixar o nosso prazer nas mãos do outro. Somos ensinadas a odiar e ter nojo de nossos corpos, e a competir com e odiar outras mulheres, normalmente, em prol de homens. Falar do nosso prazer e d o que gostamos? JAMAIS!

Então, quando a gente tá na cama tem toda essa bagagem bizarra, essa performance esperada da gente, esse mise-en-scène do sexo cis hetero em que a gente tem sempre que chupar primeiro, pra depois o cara meter e gozar logo, sem nem pensar no nosso prazer. É assim que funciona nos filmes, é assim que o sexo cis hetero padrão acontece nas camas por aí. E homi num tá interessado em falar disso, né, gente? Homi pensa na própria piroca e mais nada. É um lugar muito confortável pra eles. Foi assim que eles foram ensinados pela sociedade falocêntrica e foi nessa sociedade que eles nasceram, mas o problema é que é 2022 e eles continuam sem fazer nenhum esforço pra sair dessa ideia e atitude. Então, fica mesmo cada vez mais raro ser bem comida.

E eu sou uma pessoa que lutou muito pra entender qual era o meu lugar, que passou muita coisa pra entender o que merecia. E eu aceitei muita merda achando que era tudo a que tinha direito, que era tudo que ia ter na vida, pois eu era gorda e muito difícil de ser amada, e assim que as coisas eram feitas: eu é que devia estar sendo exigente demais. Ledo engano.

Então, hoje, pra mim, cama é, provavelmente, o lugar, ou um dos lugares, em que mais me sinto à vontade na vida. Eu me dediquei a isso, sabe? Eu fiz questão de ler muitas coisas, de ter muitas vivências, porque achava que era isso que me garantiria ser boa de cama. A quantidade. Ter experiência sexual era ter transado com muitas pessoas, sempre esse movimento de fora pra dentro, né? Quando, na real, o que me garante mesmo na cama hoje é o amor próprio. E eu só cheguei a ter contato com o amor próprio porque me permiti me conhecer desde cedo. Fiz terapia também, claro. Mas tendo começado a me masturbar aos oito anos de idade, foi desde muito cedo que pude ter esse contato comigo mesma.

E eu acho que tive sorte de nunca terem verbalizado pra mim que aquilo era supostamente feio ou errado. Eu sabia que era um assunto que não devia ser falado ou discutido livremente por aí, mas isso nunca me fez parar. Então continuei. Na encolha, mas continuei. Aos poucos eu fui aprendendo sobre o meu corpo e sobre o meu prazer, e fui entendendo que eu não estava fazendo nada de errado comigo. Hoje, tenho o contato com o meu prazer como norte de quem sou e do que eu escolho para mim. E esse norte não é nada estável, nesse mar de auto-ódio em que estamos inseridos todos os dias. Esse norte eu preciso encontrar e lembrar de seguir várias vezes, quase todo dia. Mas gozar é a minha bandeira.

Então quando eu falo de ser bem comida, não estou falando desse lugar passivo em que sempre nos colocam, como a própria expressão nos coloca: como algo a ser consumido.

Eu falo desse lugar privilegiadíssimo de alguém que tem nas mãos o leme do próprio prazer. Alguém que entendeu que a base de tudo é amar e confiar em si mesma, mesmo depois de tanto gaslighting que sofreu.

Então ser bem comida não tem como ser esse lugar passivo, porque eu fiz muita coisa pra isso acontecer também. Porque quando a gente se sente confortável e feliz no nosso corpo, não tem como mais nada tornar o “ser quem a gente é” desconfortável. Não tem como a gente se achar exigente ou duvidar do que a gente merece. Transar comigo se preocupando com o meu prazer e me fazendo gozar horrores? Aquele mínimo. Desculpa te dizer, mas é o mínimo.

E é assim me amando que vou aprendendo e sacando o que eu mereço. E a gente num merece pouco, não, viu, gente! Na real, ser bem comida devia ser o mínimo. Mas ninguém diz isso pra gente. E eu não vou mais aceitar menos que isso. O meu prazer não gira em torno do de vocês, e eu não sou objeto a ser consumido. Sexo é mais do que penetração e não é do pau de vocês de que depende o meu prazer.

Beijos, e se não for me fazer gozar, NÃO ME LIGA!

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