Medida de Sobrevivência

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E se, porventura, a realidade, que já é ruim, ficasse pior? E se o governo, que já usa, histórica e sistemicamente, a Polícia como braço para enfiar a porrada em uma parcela específica da população, inventasse uma forma ainda mais cruel e autoritária de moer brasileiros e brasileiras, sob a premissa de “ajuda” para um “retorno às suas origens”? Distópico. Mas um multiverso mais crível e próximo do nosso do que aparenta.

Esse é justamente o argumento do já aclamado “Medida Provisória”, filme que estreou no último dia 14 em salas de cinema de todo o Brasil. O longa, adaptação da obra teatral “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, tem a estreia do astro Lázaro Ramos na direção e conta com nomes igualmente estelares no elenco, como Alfred Enoch (“How To Get Away With Murder” e “Harry Potter”), Taís Araújo, Seu Jorge, Emicida, Mariana Xavier, Licínio Januário e Raphael Logam, entre muitos outros. Tive a oportunidade de assistir essa bela obra no cinema e gostaria de compartilhar algumas reflexões com você.

Antes de qualquer coisa, se faz necessário dizer que este texto não se trata de uma crítica baseada na sinopse ou até mesmo de um texto de spoilers. Eu odeio spoiler e, além disso, seria bastante deselegante com o filme. De modo que, para entender o que tratarei brevemente aqui, será mesmo necessário assistir o filme. Valerá a pena; não deixe de prestigiar esse belíssimo trabalho.

Ainda assim, de todo modo, eu terei que me ir um pouco mais fundo para mostrar o que propõe a história.

A trama se passa em um possível futuro de Brasil, não tão distante da nossa realidade, em que uma iniciativa do governo para uma “reparação” pelo passado escravocrata provoca uma reação no Congresso Nacional, que, por sua vez, aprova uma medida provisória que ordena o urgente exílio dos cidadãos brasileiros de “melanina acentuada” de volta para a África. Tal MP, afeta diretamente a vida de todas as pessoas no Brasil e, claro, transforma radical e subitamente a vida do casal formado pela médica Capitu (Taís) e pelo advogado Antonio (Alfred), bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), que moram juntos no mesmo apartamento. Cria-se um ambiente de completo caos, protestos e um movimento de resistência clandestino que inspira toda a nação.

Dito isto, devo dizer que o filme entrou na minha cabeça. Tomou meus pensamentos de assalto. Porque é simplesmente impossível que cada espectador ali, sobretudo pretos e pretas, não se teletransportem para dentro dessa realidade instantaneamente. Não teve jeito: eu me senti realmente dentro do problema, busquei formas de solucioná-lo na minha mente. Revidei socos, atirei em brancos. E nada foi suficiente para que, de fato, houvesse a um fim decente para mim e para os meus.

Ainda assim, aprendi algumas coisas.

A primeira é que precisamos aprender a devolver pros outros aquilo que eles nos jogam. Brown já lembrou, cirurgicamente, de vários casos de gente que admiramos, as quais lutavam por justiça e paz, mas mesmo assim, terminaram seus dias com tiros covardes, como Malcom X, Gandhi, Lennon, Marvin Gaye, Sabotage, 2Pac, e até o evangélico Martin Luther King. Foi aí que lembrou de um amigo que, divinamente, o faz lembrar de algo poderoso (e óbvio):

“(…) não joga pérola aos porco, irmão

Joga lavagem! Eles preferem assim,

cê tem de usar piolhagem!”

É necessário, portanto, acabar com essa crença dita “progressista” de que a democracia resolve todas as lacunas e problemáticas que se apresentam. Porque é essa ladainha ridícula que faz com que respondamos tiros com nota de repúdio; que respondamos assassinato, tortura, porrada, bomba, desumanidade com texto viral em Instagram e hashtag do momento e que nos faz ter como única resposta o repostar, em forma de “denúncia”. Mais uma Páscoa em que os menó da favela, neste caso, do Jacarezinho, são impedidos de brincar, de se divertir, como crianças que são, porque um blindado da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro entra na favela. Domingo de Páscoa. Jesus não pode nem ressuscitar na brincadeira da criançada. A “Farda Que Pratica O Mal” se encarrega pessoalmente de impedir.

Domingo de Páscoa na Favela do Jacarezinho. Foto: Bruno Itan/ Reprodução Instagram

No filme, podemos ver muitos de nós apanhando, assustados, por uma polícia que só espera a ordem e o momento propício para descontar seus atrasos de salário, sua falta de equipamentos e preparo, e, claro, sua lógica de pensamento totalmente manipulado por uma corporação que, há anos, acredita estar acima da lei, acima de nós, cidadãos. Sonhadores e, na maioria esmagadora dos casos, iguais. Imagem e semelhança. 

De modo que, é fundamental que cessemos com o entendimento de que devemos ser e responder com democracia quem quer um modelo fascista de país. Fascista não conhece democracia. Eles são violentos, extremos, surreais. Tratar com paz quem te trata com violência é idiotice. É morrer sorrindo para quem sorri por te matar. Uma gentileza indecente.

Você se recorda do que o povo preto de Minneapolis fez depois de George Floyd dar seu ultimo suspiro, né? Se não se lembra, reveja:

Protesto em Minneapolis em 29 de maio de 2020. Foto: Reprodução/ AP Photo; Julio Cortez

Eu realmente acredito em consequências para tais atos, no Agora e no Porvir, mas já passou da hora de não deixarem nos matar assim. E de responder proporcionalmente com o que nos for colocado. Desculpa, Jesus. Essa parte, em especial, EU não sigo, não. Se me bater numa face e eu tiver como, vai ficar no chão mais de 40 minutos tentando entender a origem da vida de tanto que vai tomar porrada.

Aqui chegamos ao segundo ponto, que suplementa o primeiro: aprender a nos defender. Como você pôde ver, sou um ferrenho defensor da violência como forma de defesa, quando a outra parte envolvida no conflito ultrapassa limites. Mas nada disso, nenhuma forma de defesa acontece se você não estiver treinado. E por treino, entenda, não tem a ver com golpes, como socos, chutes e acrobacias. Nada disso. Tem a ver com se expor, dentro de um ambiente seguro, a simulações de situações-limite: com 1, 2, 3 agressores; com intenção de te golpear, de te derrubar, de te enforcar, de esfaquear, de bater com uma barra de ferro ou com um bastão de madeira; com luz acesa, com luz apagada; com agressor gritando com você, com silêncio puro; com muito espaço de escape, com pouco espaço. Treinar várias formas de defesa, e adaptações, em situações-limite, de modo que, SE alguma situação assim se apresentar, CASO aconteça, você NÃO trave e saiba agir.

Perceba que eu não afirmo, em hipótese alguma, que você deve ser violento ou violenta com alguém. De maneira alguma! Ninguém aqui quer guerra com quem quer que seja! Eu prefiro um mundo civilizado em que a conversa resolva conflitos. Um mundo em que ela, mesmo que não cesse diferenças, torne a convivência possível, palatável. Comum. Não falo de criar a guerra; falo, sim, que você deve estar preparado CASO alguém inicie uma contra você. Porque apanhamos demais já. E temos direito de nos defender. E quem nos lembra é enviado do Divino:

“Por todos os meios necessários”.

Mais ainda: aliado ao preparo em si, estão o seu corpo e as suas capacidades. Não adianta estar mental e tecnicamente treinado(a), se seu corpo não está devidamente condicionado e só recebe besteira na composição energética de sobrevivência. Em uma situação-limite, seu corpo manda uma bomba de hormônios, em especial a Adrenalina, para que você reaja com seu instinto de sobrevivência. E ele precisa estar pronto e em condições de receber essa bomba. De modo que, comer bem e se exercitar, ajuda e te impulsiona corretamente, caso você precise sair correndo em determinada situação. Ou se você precisar ter sangue frio diante de um branco te apontando uma pistola ou fuzil.

Acredite, tudo isso vai fazer sentido quando você assistir o filme. Então assista!

O terceiro ponto é bem menos combativo. Ele diz respeito a quem somos. Porque, sim, muitos de nós ainda têm dúvidas de quem somos. E isso em função da tonalidade da pele. Porque Yuri Marçal, Seu Jorge, Lupita Nyong’o, Iza e Elza Soares são indiscutivelmente pretos. Mas há pretinhos e pretinhas em dúvida sobre sua cor, por não serem retintos, por terem traços fenotípicos, isto é, de aparência, que não necessariamente se enquadram no esperado para um indivíduo preto. Para todos vocês, irmãos e irmãs, eu digo sem medo: o Sistema (e por “Sistema”, leia “brancos”) sabe quem é quem.

Na hora em que um branco estiver precisando de “ajuda” na loja e você estiver esperando para pagar ou pela volta do vendedor com seu pedido, eles te dirão quem você é. Se você correr para pegar o ônibus ou o carro de aplicativo, eles te dirão quem você é. Se você chegar no seu consultório médico se apresentando como o/a profissional que vai realizar a consulta, eles te dirão quem você é. Não tenha dúvidas disso.

E por que te digo isso agora? Para que você não dê a eles o poder de decidir sobre sua negritude. Aproprie-se dela agora. Se entenda como tal, se ame como tal. Busque por isso em terapia, em conversas, com referências. Porque assim, seja para tentar te descredibilizar como pessoa preta, seja para te afirmar, não serão eles que deterão o poder de ditar a narrativa. Você é quem fala; o poder é seu. Como foi entoado pelo profeta e está escrito:

“Permita que EU fale!”

O quarto e último tópico também suplementa os anteriores. Trata-se da necessidade de cercarmo-nos de referências de toda sorte, não só no campo online e virtual, mas, sobretudo, no campo do real, do físico e do cotidiano.

É tempo de se Aquilombar. De buscar o contato real, com pessoas pretas reais, em situações reais de troca. Seja por interesses comuns, tais quais leitura, militância, faculdade, esportes; seja por uma relação mais íntima, de toque, de olhar, de troca de calor e de palavras físicas mesmo. De abraço, de confidência, de encorajamento. Esses espaços, outrora, salvaram gente como nós, então temos noção empírica do que bem que isso pode trazer.

A união desses quatro pontos que “Medida Provisória” colocou para mim resolve a questão dos pretos e pretas no Brasil? Não. O que iniciaria um movimento de mudança seria reconhecer a escravidão como mazela humanitária basilar deste país e reparar, financeira e legalmente, os descendentes daqueles que viveram essa atrocidade. Como também sentenciaram os profetas:

“Descendente de escravo

que não teve direito à indenização…”

Porra, eu sempre choro nessa. Borrou as palavras do humilde escritor. Porque daria um filme mesmo.

Vai lá, assista o Medida. Asseguro que você vai reconhecer os pontos que trago aqui.

Jesus Preto, ressurreto. Colagem Digital: Uendel Nunes/ Reprodução Instagram @uendelns

A Dimas, o Primeiro.

O Jesus Preto tá de volta no bagulho pra dar esperança pra Humanidade.

TAGS: Medida Provisória, Páscoa, Negritude.

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