Jeitinho brasileiro, patrimônio do mundo

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Foto: Betinho Casas Novas

O brasileiro tem, por costume, a intrínseca mania de querer se menosprezar em relação a outros povos, sobretudo os povos ao norte da Linha do Equador. E não é qualquer povo também; em virtude não só da colonização de cunho territorial, econômica e militar, mas também a epistemológica, isto é, do conhecimento, e a mental, temos uma preferência nada natural por endeusar, glorificar e lamber culturas, saberes, histórias e procederes dos povos europeu e norte-americano.

O que raramente se tem noção é o quanto esses povos estão próximos de nós por serem, pasme, humanos e viverem em sociedade. Parece simples, mas gera algum tipo de estranhamento.

E é justamente para este fim que estamos aqui.

Sargento norte-americando tocando música. Foto: Reprodução Instagram

Digo tudo isto, para noticiar a denúncia que tem sido amplamente divulgada pelo jornalista, escritor e ativista dos direitos civis Shaun King, 42 anos. Ele, uma voz potente das redes, com gigante alcance e que, portanto, utiliza delas para fazer inúmeras denúncias seríssimas, como os bombardeios norte-americanos na Palestina e a cobertura dos casos de George Floyd e Breonna Taylor, veiculou ontem, 11 de abril, algo no mínimo curioso. E Made in Brazil, ou seja, já conhecido por nós.

Ocorre que há inúmeros vídeos de cidadãos norte-americanos denunciando as forças policiais por, vejam só vocês, tocarem músicas pelo celular, bem alto, quando abordados por cidadãos. O motivo? Eles mesmos dizem: “assim, quem me filmar, terá seu vídeo deletado em virtude dos direitos autorais da música”.

Você consegue entender o que está acontecendo lá?

Policiais estão, literalmente, dando o famigerado JEITINHO BRASILEIRO pra fazerem o que quiserem. E, bem, as polícias americanas, definitivamente, não são polícias corruptas, tampouco racistas. Elas não acobertam agentes que atiram em pessoas que estão fazendo sua corrida matinal, ou que matam adolescentes dentro de suas casas enquanto dorme, ou ainda que ajoelham no pescoço de homens no meio da rua. Claro que não. Estamos falando de polícias íntegras, respeitosas e absurdamente profissionais. Não há o que ter medo.

Normalmente, se você é branco. Porque é óbvio que todas essas vítimas tinham uma cor de pele específica. Nem precisei dizer, você já lembra bem.

Patrick Lyoya. Foto: Reprodução Instagram

Aliás, cabe o comentário em forma de detalhe: Shaun King está já cobrindo o que tem sido veiculado como execução por parte de agentes da polícia de Grand Rapids, no estado de Michigan, Estados Unidos. A pessoa assassinada seria um homem imigrante, de origem congolesa, pai de 2 filhas pequenas, chamado Patrick Lyoya. Segundo os relatos da família e do comissário do condado, que viram a gravação da câmera instalada no uniforme dos agentes envolvidos, a polícia teria colocado uma arma na nuca de Patrick e atirado, assassinando-o, assim, com requintes de execução. King afirma que este caso “abalará a nação”. Desse tipo de polícia, a qual muito bem conhecemos e reconhecemos, é que estamos falando.

Só que dessa vez, muitas das pessoas que estão se perguntando why are cops playing music?” (“por que os cana tão botando música pra tocar?”, em português brasileiro) são justamente brancas. Veja que, diferentemente da polícia no Rio de Janeiro ou em São Paulo, por exemplo, que simplesmente quebra o celular do cidadão e já era, os distintos agentes explicam educadamente o que estão fazendo. Sem medo de serem felizes. Há inclusive um vídeo em que uma viatura simplesmente toca uma música da Disney. Indiscriminada e aleatoriamente.

O que fica são as perguntas: Por quê? O que fazem ali que não pode ser filmado? Por enquanto, não se sabe. Mas o ponto é justamente o encontrar a brecha do Sistema a seu favor. Reconheceu?

Jeitinho Brasileiro.

Em terras tupiniquins, isso já faz parte da cultura. Do cotidiano. Prazos e combinados, se cumpridos à risca, se tornam até estranhos. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, falar que vai marcar para sair com alguém e realmente entrar em contato para marcar é quase uma ofensa. Você se torna, automaticamente, nem um pouco confiável. Paradoxal, controverso e inegavelmente cheio de malemolência: eis o brasileiro, em essência. Tirando o sul. Porque nem é mais Brasil. Nem nosso clima tem. Eles já querem se separar, se tornem logo nação independente para que a gente possa finalmente arregaçar vocês na trocação.

Do lado de cá, portanto, isso é normal. E a maior prova disso foi a determinação do Supremo Tribunal Federal, em 3 de fevereiro deste ano, para que a Polícia Militar do Rio de Janeiro iniciasse instalação de câmeras nos uniformes dos agentes de segurança, a fim de evitar e prevenir casos de abuso de autoridade e, claro, crimes. Isso depois de um estudo ter evidenciado que tal política teria potencial de reduzir uso de força e prisões.

E onde entra o jeitinho brasileiro nisso tudo?

O então Vereador Elizeu Nascimento. Foto: Reprodução Instagram

O deputado estadual Elizeu Nascimento, do PL (partido do presidente, que surpresa!), policial de carreira e recém-empossado como presidente da Comissão de Segurança Pública e Comunitária na Assembleia Legislativa do Mato Grosso, é um bom exemplo. O parlamentar é um dos mais contundentes na crítica à instalação câmera no fardamento dos policiais e, inclusive, tem tentado barrar e arquivar o Projeto de Lei 619/2021, de autoria de Wilson Santos (PSDB), que entende como necessária a imposição do STF ao Rio de Janeiro para as câmeras e, portanto, segue no mesmo ponto de vista. O PL já havia tramitado na Comissão de Segurança Pública do estado e estava em fase de análise na Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR).  

Aqui, fazemos as mesmas perguntas do caso norte-americano: por quê, consagrado? Ao que você não quer que a Justiça tenha acesso?

Indagado sobre a operação “Simulacrum”, deflagrada pela Polícia Civil do Mato Grosso e do Ministério Público Estadual afim de investigar cerca de 81 policiais da Rotam, do BOPE e da Força Tática do Comando Regional 1, em Cuiabá, que teriam executado de 24 pessoas em falsos confrontos, o distinto parlamentar disse que nada tinha a dizer. Pudera. Essa gente, quando indagada com fatos, sempre foge, escapole, se esquiva.

E é justamente isso que o nobre deputado mais sabe fazer. Que outra maneira ele teria para esconder a 7 chaves que teve o mandato anterior, de vereador, cassado por participar de uma fraude eleitoral nas cotas de gênero, em 2016, e que, deste modo, se tornava inelegível por 8 anos em novo pleito? Como ele conseguiu se eleger deputado como segundo mais votado de Cuiabá em 2018, abdicou do posto na Câmara Municipal e nada do que ficou decidido pela Justiça, portanto, foi aplicado.

Este homem é o Jeitinho Brasileiro do Jeitinho Brasileiro. Você concorda?

Há outros pontos que aproximam os “gringos” do Norte a nós. E outro bom exemplo é o novo hype ucraniano do momento, que é justamente atacar a ex-Chanceler alemã Angela Merkel e o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy por supostamente não terem feito esforços para que a Ucrânia tivesse respaldo para entrar na União Europeia lá em 2008, já que achavam muito cedo e que não havia condições políticas para realizar o movimento. Tais suposições são trazidas justamente por Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano. Ele ainda questiona que os ex-líderes poderiam ter tido “medo” de qualquer indisposição com o Kremlin. E como ato final, Zelensky convidou ironicamente os dois para visitarem Bucha, cidade onde cerca de 410 corpos foram encontrados após a retirada de tropas russas. Nada mais típico.

Parece que não tem a ver com a gente, não é?

Mas, aqui, o nosso jeito de dar uma de Zelensky é, literalmente, dizer “E o PT?”. Veja, não tem absolutamente nada a ver com o partido em si, e, sim, com o sentimento geral que tem tomado conta das discussões políticas desde que Bolsonaro resolveu se dizer candidato à presidência da república. Um grande esforço nacional para transferir automaticamente todas as culpas de tudo o que houver de ruim ou detestável no governo Bolsonaro para a gestão anterior. E é claro que não se trata do governo Temer, mas do governo Lula/Dilma. Assim, a pergunta é quase um card mágico dos devotos de Bolsonaro (leia-se robôs).

De modo que, temos, nós e eles, a mesma capacidade de culpar outras pessoas por erros que não necessariamente são delas. E, pior: por erros nossos mesmo. Filhadaputagem de marca maior.

No fim das contas, a avaliação é bem simples: europeus, norte-americanos e nós = humanos. Detestáveis e iguais. Esse é a mais latente e voraz constatação.

Fontes:

https://www.instagram.com/p/CcNwThGAD5R/ (Instagram Shaun King)

https://www.instagram.com/p/CcNs5mXgNzf/ (Instagram Shaun King)

https://www.instagram.com/p/CcNrZdbgvsF/ (Instagram Shaun King)

https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-rio-plano-de-letalidade-uso-cameras-policiais-03022022 (Decisão STF)

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58756616 (Estudo BBC)

https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/juiz-manda-cassar-diploma-de-vereador-de-cuiaba-por-suspeita-de-fraude-em-cota-de-genero.ghtml

https://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=500869&noticia=presidente-da-comissao-de-seguranca-tenta-barrar-projeto-para-implantar-cameras-em-fardas-de-policiais&edicao=2

https://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=501768&noticia=critico-de-cameras-em-fardas-deputado-elizeu-diz-que-nem-leu-sobre-operacao-que-investiga-execucoes-por-pms&edicao=1

https://gazetamt.com.br/9/12/2020/justica-cassa-mandato-de-vereador-e-deixa-sargento-elizeu-inelegivel/

https://www.pontonacurva.com.br/eleitoral/tre-decreta-transito-em-julgado-em-processo-que-declarou-vereador-inelegivel/15009

https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/04/04/provocacao-de-zelenksy-a-merkel-e-sarkozy-vem-de-14-anos-atras-entenda.htm

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