Estranhos tempos de defender o óbvio

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Cara, tem uns textos que eu fico até meio triste de escrever, e esse é um deles. Estes estranhos tempos de defender o óbvio, né?

Bom, primeiro eu queria dizer que este é mais um texto sobre BBB, que não necessariamente é sobre o programa, e vou comentar aqui sobre a eliminação absurda da Linn da Quebrada, no paredão de ontem, de quem sou fã e quem acompanho desde antes de ela entrar no programa. Então assim, não gosta dela? Ela não tava te entretendo o suficiente? Precisa nem me ler, belê?

Aos transfóbicos eu prefiro nem dirigir a palavra.

Desde que ela foi ao paredão, eu já sabia que ia precisar escrever esse texto, antes mesmo do resultado de ontem, porque já imaginava que a eliminada seria a Lina mesmo.

Eu já tava há algum tempo sem assistir ao programa, principalmente depois que uma racista foi campeã, mas vi na entrada da Lina um sopro de esperança e estímulo pra poder assistir e acompanhar alguma coisa. Torci por ela do início ao fim, não só por ser fã dela, mas por entender a importância de uma travesti ganhando as telas de um dos horários nobres da (gostemos ou não) maior emissora do país, sem ser em uma notícia de morte ou violência. Como já falei aqui em outro texto, o Brasil ocupa há treze anos consecutivos o terrível posto de país que mais mata pessoas trans e travestis em todo mundo, segundo relatório da Transgender Europe (TGEU), que monitora esses levantados globalmente por instituições trans e LGBTQIA+.

Então, assim, não tinha como não se empolgar com a entrada dela num programa deste, mesmo que isso também tenha tirado os transfóbicos leves, intensos e moderados de seus buracos, e que com a onda de esperança, tenha também surgido diversas outras ondas de ódio e transfobia, como bem relatou a comunicadora Ana Flor – líder do grupo de seis travestis que compunham a equipe de ADMs da artista – e como eu bem pude observar nos comentários de leitores de textos em que a defendi.  

Tendo entrado como uma das favoritas e com grande público fora da casa, devido à sua carreira de multiartista, aos poucos vi que isso não duraria muito quando ela passou a ser julgada por diversas atitudes na casa, com aquela régua sempre mais dura e mais comprida com que são julgados todos os corpos, identidades e personalidades que desviam do padrão.

Lina “errou” muito menos do que muitos participantes, mas foi sempre uma das mais julgadas e odiadas. Rapidamente, foi de favorita à mais odiada da casa, como apontava enquete do UOL, nas semanas seguintes à sua votação em P. A., após conquistar a liderança, e até antes disso, após as diversas brigas com Natália.

O que Lina falou hoje no programa de Ana Maria Braga, que recebe semanalmente os eliminados do programa, foi que sua intenção ao participar do programa era a de “humanizar” a ela mesma, de mostrar que uma travesti pode e deve ser amada, e também de mostrar que a representatividade deve servir de trampolim para outros objetivos e possibilidades. Ela só queria contar a própria história, e acho que conseguiu.

 Aí um dos argumentos que mais surgiram nessa onda de ódio que a atingiu na internet, foi a de que Lina “não sabia jogar”, ou não “entregava entretenimento suficiente” por ser uma pessoa que procurava o equilíbrio e prezava as boas relações, mesmo que às vezes com certa dificuldade, com suas amigas e outros participantes no programa. Mas a maior crítica foi quando as pessoas tocaram na questão da representatividade e foi dito que o “BBB não era um programa sobre isso”.

Vamos pensar aqui sobre a tal representatividade. Por baixo, podemos dizer que a representatividade é importante porque é só quando vemos alguém parecido conosco numa capa de revista ou na televisão que nos sentimos menos sozinhos, menos errados e acabamos por identificar nosso lugar no mundo. Pelo menos é assim comigo, como em cada vez que vejo mais pessoas gordas ocupando lugares de destaque tanto nas mídias quanto no mercado de trabalho e nos padrões de beleza. Foi assim quando conheci Jojo Todynho e comecei a reparar nos biquínis dela, e passei, a partir disso, a me permitir usar fio dental na praia, por exemplo. Dito isso, vale lembrar que Ariadna Arantes, primeira participante trans do BBB, foi eliminada em sua primeira semana de programa, onze anos atrás.

Então, se isso ainda acontece de forma muito devagar para os corpos gordos, para os corpos travestis e transgênero isso ocorre ainda de maneira muito mais morosa. A travesti está à margem da sociedade; essa sociedade que odeia seus corpos, não lhes concede sequer afeto e reclama da “prostituição nas ruas”, mas que também são seus maiores clientes e que tampouco dão oportunidades outras para esses mesmos corpos que tanto odeiam e criticam.

Em julho de 2021, Lina falou ao Splash, do UOL, sobre a ideia da inclusão presente na representatividade que, muitas vezes, na verdade, acaba contribuindo para uma atmosfera de exclusão e segregacionismo entre os movimentos. No vídeo, intitulado “Armadilhas da Representatividade”, Lina discorre sobre como a representatividade pode também desumanizar as pessoas, quando as reduz a um único tema e comportamento esperado. Como se ao representar um movimento, como o movimento LGBTQIA+, a pessoa fosse reduzida a isso e só pudesse falar e opinar sobre a causa, como se estivesse representando uma única coisa, uma única história, dentro de um movimento tão diverso e amplo como o movimento LGBTQIA+. Lina falou também sobre a “representação da representatividade”, há muito tempo usada e amplamente difundida por marcas, instituições e corporações, quando colocam estes corpos como “alegorias e estandartes da representatividade”, numa estrutura que tradicionalmente os exclui e os marginaliza o tempo inteiro, os controla e forma “pequenos redutos formados dentro do mercado, reduzido e colocando alguns movimentos contra outros”, enquanto enchem o bolso de dinheiro, e deitam a cabecinha impune em seus travesseiros, com suas cotas de diversidade preenchidas.

Então, precisamos entender também que não é só havendo uma travesti onze anos depois, finalmente, como participante de um reality show concorrendo a um milhão e meio de reais que será suficiente. Cadê as travestis atrás das câmeras? Nos roteiros? Nos salários milionários da emissora? Nas posições de destaque em empresas? Nas novelas, nos filmes, nos milhões de reproduções no Spotify? Cadê as travestis conseguindo viver além dos 35 anos de idade no Brasil?

Mas o negócio é que vocês preferem deixar o poder na mão de quem sempre o teve: os homens brancos cishetero. Lina teve uma trajetória linda para sair agora do programa e perder uma votação contra dois homi branco (qualquer semelhança não é mera coincidência): um qualquer que nunca tomou posição no jogo e na verdade só se movimentou quando viu que o dele estava na reta, usando inclusive a dependência emocional de uma mulher preta para se sentir melhor e se proteger, e outro que entrou querendo movimentar o jogo, batendo no peito pra dizer que é hetero top e sendo escrotinho a torto e a direito porque acha que é isso que o público quer, e é mesmo, tá certo, sacou a parada. Porque infelizmente, já está nítido que é pra mais um deles, um abusador, manipulador, narcisista e escroto que vocês vão provavelmente dar o prêmio dessa edição, porque vocês gostam é de ver gente brigando na tela, vocês gostam é de passar pano e perdoar homem branco, vocês curtem violência psicológica, choro e perseguição, e amam favorecer quem sempre é favorecido, afinal, entretenimento, pra vocês, é isso. Vocês precisam de muito sofrimento dos outros pra se entreter e desviar da vidinha medíocre de vocês mesmos. Lidar com a diferença e entender as pessoas além de suas próprias histórias é um fardo muito pesado pra vocês.

O que me consola é o fato de saber que Lina terá muitas oportunidades aqui fora, e que se Deus quiser, vai ganhar muito mais que esse prêmio. Lina já entrou sendo muito maior que o BBB, pelo menos no que representava e no que sempre foi para mim e para muitas outras pessoas através de sua arte. Voa, garota! Você merece o mundo inteirinho!

Brasil, você só me decepciona.

Quero ver em outubro.

Melhorem.

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