Raiva é algo legítimo?

Leitura: 6 min
TEMPLATE IMAGENS PARA SITE 1200x630px (6)

Recebo muito feedback. Quando o assunto é feedback, eu recebo até sem pedir. E o que mais chega é: raivoso, sexista, estúpido, desequilibrado, discurso de ódio.

Vamo lá, queridos,

SANTO, 

na internet,

não

tem. 

Tem quem esconde seus erros,

suas merdas.

Mas SANTO,

nunca serão.

Há muitos livros e documentários que abordam as personalidades plásticas que foram criadas com a chegada das redes sociais. Há casos de pessoas, influenciadores e em evidência — inclusive em movimentos sociais — que receberam CONSULTORIA fina para construir de maneira digital (o que é o mesmo que artificial) um perfil de “close certo” 24 horas por dia.

Há influenciadores que se apropriam de espaços de falas de MOVIMENTOS SOCIAIS. Se antes você precisava de formação, de leitura, e de vivência no campo, hoje você precisa de um perfil esteticamente bem elaborado, umas frases bem redigidas, umas fotos pra biscoito do sex appeal que ninguém é de ferro, e pimba: eis o novo pensador de nicho.

Sujeito que vem com poder, pois tem mídia de burguesia branca e progressista branca de esquerda apoiando, assim como a direita dá voz aos Fernando Holliday no universo em desencanto.

Quebrando o Tabu é o campeão em repostar textos de influenciadores de nichos, e fazem isso com um toque de culpa católica.

Você conhece a equipe do Quebrando o Tabu? Eles dão uma entrevista? Botam a cara? Produzem conteúdo próprio deles? E por quê?

Veja, não é uma bronca direta a um veículo que é lido e compartilhado por milhões, mas é pra revelar que existe o produtor de conteúdo de militância “especializada” e existem os “canais de distribuição” do produto.

Mas o que raiva tem a ver com isso?

Antes, entenda: meu ponto aqui é fazer você enxergar que as militâncias, quando submetidas ao crivo da CLASSE e dos PRIVILÉGIOS DE CLASSE, se tornam tão diferentes quanto falas distintas de brancos e negros.

Negros burgueses, gays burgueses, feministas burguesas, com foco em, por exemplo, uma frente de luta, a representação na moda, no cinema, na TV e nas artes, com altíssimo nível de produção, discurso, conceitos, leituras, releituras, redes profissionalíssimas, fotos adequadas, tom de voz adequado, alcançam milhões de pessoas, e nem sempre a PERIFERIA vai ter nessas pessoas um referencial tão forte quanto os negros favelados, gays favelados, feministas faveladas com foco em sua frente de luta única: o direito à vida.

Uns vão discursar sobre tudo.

Bate na Xuxa, bate no Monteiro Lobato, bate no Bial, bate no Silvio Santos, bate no Black AF, traz conceitos em inglês, toca o terror em análises elevadíssimas.

Outros vão falar da África Utópica, de Wakanda Forever, e tomale vestimenta combinando, falas aprovadas, classe aprovados, “nunca errou” e “dandaras sensatas” de um lado, e os “carniça” de outro.

Enquanto isso ocorre, nas periferias segue o baile: PM executa mais 13, executa velho, executa criança, corpos são enfileirados no chão, sangue e terror pra todo lado, ali ninguém entra no Youtube Studios, ninguém vai na festa da Nike, ninguém assina contrato na TV, ninguém entra pro circuito dos mais badalados. E veja:

IMPORTANTE QUE TENHAM

PESSOAS NESSES ROLÊS

TODOS.

Mas estamos no Brasil, amado. E enquanto a agenda de uns privilegiados de classe envolve PROJAC e festa na Reserva, o de outros é o mesmo: enterrar vizinho, luz cortada, esgoto entrando em casa, mais tiro, calor do caralho, devendo banco, comida pouca, polícia jogando os trabuco em cima, volta pra enterrar o vizinho, todos os dias há anos.

TODOS

OS

DIAS.

Aí surgem iluminados que cruzam essa ponte interna de desigualdade e fazem coleta de alimentos para os mais pobres, tentam mandar o elevador pra baixo depois que subiram. Mas é tão minoria quanto os brancos que fazem algo para mudar.

Nesse sentido, nesse cenário, quero dizer a você de onde eu venho. Meu discurso é todo pautado numa leitura a partir da periferia. Sem o elemento classe, pra mim, a leitura de raça está incompleta.

Muitos aqui já leram Angela Davis sobre isso. A convergência de gênero-classe-raça dá os primeiros elementos para que possamos desenhar uma plataforma de demandas, ou um projeto de âmbito nacional, pleno, amplo.

Ocorre que, se você tira um ou dois desses elementos, os resultados finais são gravemente comprometidos.

Qual o objetivo fim de uma luta de minoria identitária? Chegar ao patamar de igualdade com a maioria. Portanto, quando você entra numa luta identitária, tem que entrar sabendo que existe uma página dois.

A luta identitária não é um fim em si mesmo, mas um meio, para que pessoas sejam vistas e tratadas como pessoas, e tenhamos um mundo justo, de políticas públicas equânimes, que suportem todas as pessoas para além da nuvem de ideias, mas com saúde, com educação, acesso, trabalho, meios de dignidade palpável, habitação, garantias de segurança individual e intelectual. Precisa do Estado pra isso. Seja pelos meios atuais, seja por uma revolução.

Há de um lado pessoas que dizem que as pautas identitárias não valem nada para a construção do país, e há outras que pensam que a luta identitária é um fim em si.

Há uma polarização, de um lado “homens-brancos-hetero-cis”, de outro a “diversidade-negritude- feministas”.

A questão é: esses grupos talvez nunca convirjam. E isso não acontecer, deve ser previsível. O que deve ser resolvido é como todo discurso de tolerância se converte em capital político, PARA UM FIM SOCIAL E ECONÔMICO nacional.

De modo que eu venho de um lugar onde o principal problema é resolver a questão brasileira da desigualdade e miséria, causada, sim, pelo racismo estrutural. E eu penso que o PRIMEIRO problema brasileiro NÃO É DE GÊNERO, É DE RAÇA.

Mas isso PRECISA DAR EM UM PROJETO DE PAÍS, e isso não se faz apenas dentro da minha pauta, mas atravessando disciplinas. É pegar Celso Furtado, Abdias, Nathy Finanças e Brizola.

Minhas pautas, desde que entrei nessa vida, são direito à vida e o acesso aos meios de produção, de modo que eu não sei nada sobre tênis novos da Adidas. Eu não sei nada sobre as empresas do Jay-Z. Sobre a cultura imagética da disputa de narrativas. Sobre representatividade na capa da revista. Essas coisas precisam acontecer, pois são relevantes. Mas eu estou em outro campo desse espectro, ainda olhando para milhões de pessoas que não usam Instagram para se  posicionarem na vida. Que não conhecem os melhores e aprofundados conceitos sobre lutas. Que não participam de coletivos. Que não são citadas em posts.

Classe.

E isso explica porque Luther King Jr. enfrentou isolamento no fim da sua vida entre os movimentos da época.

King não queria se pautar na fala antiestruturacionista de Malcolm, justa, mas fortemente identitária, King queria falar para pobres, negros, e inclusive, brancos e hispânicos. Pensamento que não servia (e ainda não serve) para que os líderes de movimentos identitários na internet expandam seus campos de influência.

Então o debate fica sendo sobre quem é o mais preto do rolé.

Quem é mais Wakandão sinistro.

Quem nunca tomou 220 das pica.

E tomale chibatada moral. E cria-se o ambiente de mentira, demagogia e disputa interna.

Mas eu tô resumindo.

Esses dias vi que as pessoas brigaram muito comigo porque critiquei Felipe Neto, mas elas gastam um tempo enorme com Anitta, Xuxa e vertendo nas falas delas o conteúdo sobre racismo.

Gente.

2020 e não deu pra gente perceber que todos nós somos racistas, ontologicamente racistas, e precisamos de leitura e terapia para reduzir os efeitos desse tipo de educação que nos fez assim, ou para odiar o negro, ou para se auto-odiar?

Eu sou racista, Xuxa é, você é.

A pauta deveria estar para além, a página dois disso.

A morte de jovens negros, diariamente no Brasil, deveria ser pauta principal de todos os que lutam nas pautas identitárias, mas não é. Infelizmente, a “simetria” da timeline não comporta uma dose tão forte de realidade, e que pode impedir uma agência ou um grupo influente de contratar ou realizar um job junto.

Eu sou mal falado pra caralho nos movimentos. Mas eu aprendi, em caminhadas, assembleias, vida real, ouvindo pessoas, que onde um chega, todos chegam. Há uma luta que inclui a pobreza.

Ninguém deve lutar pra ter um grupo pra ir no baile sábado.

Ouça Racionais. Ali é raça e classe, o tempo todo.

E a raiva, ela existe. Ela é legítima. Ela é contra tua surdez.

Inclusive com a de quem não quer entender isso. Eu tenho raiva dos surdos. Sejam brancos ou não.

Compartilhe

Leia também

O site da Coluna de Terça utiliza cookies e tecnologias semelhantes para ajudar a oferecer uma experiência de uso mais rica e interessante.