Desistir é na maioria das vezes cansar de resistir

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Tiagobbb

Cara, eu gostaria de conseguir escrever sobre coisas mais leves. Eu gostaria de não me sentir engatilhada com mais uma coisa que aconteceu no bbb, eu queria não ter que falar de bbb, mas aconteceu de novo, e envolve uma pessoa gorda, toca na minha vivência e eu não posso deixar passar batido. Esse argumento de que Tiago não se posicionava no jogo pois era amigo de todo mundo me fez lembrar uma pá de coisa que já aconteceu na minha vida.

Ser gorda é já nascer e crescer reconhecendo seu corpo como errado, num mundo que insiste em ver nossos corpos como doentes e culposos, e que demonstra o tempo todo que não deveríamos existir. A imagem da pessoa gorda que se retroalimenta da falta de representatividade.

Quem são as pessoas gordas que “venceram” no país e no mundo? Quem são os galãs gordos que conhecemos? Os gordos e gordas que estão em capa de revista, em posição de destaque, sendo vistos como sinônimo de sucesso e beleza? Quando que ser gordo é associado a ser bem-sucedido? O gordo é sempre representado como risível, uma pessoa muito “figura” dos contextos, o engraçadão, legalzão, ou o vilão ressentido e raivoso, que tem inveja dos amigos que namoram, é sempre rejeitado, sempre está pelos cantos se lamentando por isso e se autodepreciando para as paredes. Um grande coitado.

Nos filmes os gordos quase nunca transam, nem casam e são felizes. Basicamente somos representados o tempo inteiro como pessoas que não se amam o suficiente, afinal, não têm motivos, e tentam ser as melhores pessoas possíveis para compensar ser gordo. Por isso, o gordo tende sempre a ser engraçado na vida real, ou representado como tal na ficção. E eu entendo muito disso sabe, porque ser engraçada sempre foi um pouco uma defesa minha. Não há empoderamento que apague essas marcas.

Eu quase sempre fui e continuo a ser a amiga gorda no grupo dos amigos magros. Ou a amiga que faz parte do bonde dos gordos nesse grupo. Hoje já temos alguns representantes, mas na minha época de criança, ser gordo era a pior coisa do mundo. Você podia ser de qualquer cor, pertencer a qualquer classe social, que você já crescia sabendo que era feio. Errado. Doente. E eu, que cresci com uma mãe gorda e diabética que também tinha aprendido a se autodepreciar por isso, não poderia ver o mundo, muito menos o meu corpo, de maneira diferente. Eu, por exemplo, só fui saber muito mais velha que gente magra também podia ser diabética, quando conheci um colega de escola magro e diabético por volta dos 15 anos.

Então, assim, eu posso dizer que entendo bem do que é ser a gorda da galera. A amiga gorda, que se doa inteiramente e está disponível pra um monte de gente, porque no fundo a gente só quer ser aceito e se sentir amado, mas quando chega a nossa vez, raramente temos o mesmo acolhimento e entrega. A amiga que tem muitos amigos, mas no fim das contas está sempre sozinha. Aquela que não se indispõe com quase ninguém: igualzinho o participante do bbb. Ontem, Tiago Abravanel, único participante gordo (raríssimo) de mais uma edição do bbb, de mais um programa de televisão, não aguentou a pressão psicológica e pediu para sair. Desistiu do programa. Mas que pressão psicológica, né? Estar num programa para ganhar um milhão e meio de reais, mesmo sendo milionário, e vindo de uma das famílias mais abastadas do Brasil? Sendo branco? Sendo gordo e gay. Estando num programa e numa emissora que historicamente privilegia corpos brancos, magros, cisgêneros e heterossexuais. Num lugar que não tem nem toalha do seu tamanho.

Então deixa falar mais um pouquinho sobre o que é ser gordo pra ver se vocês entendem. É você ir pra um rolê e todo mundo ficar com alguém, menos você. Ou você só conseguir ficar com alguém às 4 da manhã, quando a pessoa já está quase em coma alcoólico, porque sóbrio ele nunca chegaria em você, e de preferência, ele não quer nem lembrar que chegou. É não poder trocar roupas emprestadas com amigas, porque ninguém é do seu tamanho. É preferir ficar em pé na praia do que mostrar a própria barriga, até porque você não cabe numa cadeira de praia, é ficar tenso se tiver que ir a uma loja comprar uma calça, nada caber, e você sair da loja sem calça e se odiando mais um pouquinho. É ter terror de brechós, porque nunca tem nada do seu tamanho. É ter medo de sentar e quebrar uma cadeira num bar ou na casa de alguém, é nunca ter entrado numa cama elástica quando criança por achar que ela não suportaria seu peso. É deixar de comprar um patins porque a vendedora da loja falou que as rodas não te aguentariam. É dormir de roupa pra não ter que ver e conviver com o próprio corpo nu, que você não olha no espelho há anos pra não sentir nojo, é querer morrer por ter um corpo tão fácil de odiar, é ser olhada com nojo por estar com a barriga de fora na rua. É nunca ser levada pra jantar, é ser traída, esquecida e trocada várias vezes, em qualquer relação romântico-afetiva que ousar ter. É ser um corpo visto como não digno de afetividade. É ser visto como objeto sexual e só servir pra transar, mas nunca pra ter um relacionamento, imagina, nem pra pegar na sua mão publicamente. E publicamente, ser invisível ou ridicularizada, ou ser visível demais e hiperssexualizada.

São opressões de uma vida inteira e uma hora isso cansa. Ontem, foi apertar um botão de desistência num programa. Mas na vida real, na maior parte das vezes pode chegar ao extremo, como acontece na grande taxa de suicídios de pessoas gordas. Drástico, né? Pois é, tem gente que se mata por ser gordo, sabia? Eu tentei aos oito anos de idade, quando entendi no bullying do colégio que bom mesmo era morrer e nascer em outro corpo, e que eu nunca ia ser considerada bonita nem bem-sucedida na vida, e é isso, é 2022 e ainda tem gente se perguntando se o Tiago Abravanel não ter sido escolhido por ninguém numa prova de resistência mesmo depois de ter sido o melhor amigo que podia pra todo mundo num reality show é gordofobia ou se não é a gente que tá exagerando. Logo eu, que nunca era escolhida pra time algum na educação física. E Tiago, mesmo que privilegiado, entrou no programa com essa bagagem de opressões, mesmo que pertencesse a uma família milionária e fosse branco. Esse jogo de realidade que é composto por pessoas, mesmo que através de diferentes estratégias e privilégios, nada mais é que um conjunto de imagens editadas que, mal ou bem, consciente ou inconscientemente acaba refletindo a vida, os olhares e o pensamento daqui de fora. Não ter toalha, porta e às vezes até corredor do nosso tamanho é viver num mundo que não deseja que nossos corpos existam.

“Hoje é um dia de coragem”, disse Tiago antes de sair, e é sobre isso: nem sempre desistir é fraqueza, muitas vezes é cansar de resistir e isso é de uma coragem imensa. É cansar de ter que ser outro alguém para ser aceito, para ser minimamente amado, para se sentir bem consigo mesmo. É sobre nem saber que tem direito a se amar, que dirá receber amor dos outros. É aceitar qualquer migalha já que não se tem nada.

É sobre se entregar tanto pros outros, mas nunca ser visto como prioridade. E de tanto não ser prioridade, uma hora a gente “desiste”, porque isso cansa. Seja apertando o botão de desistência de um programa, seja tendo nossas próprias vidas tiradas quando suicidados pela sociedade gordofóbica. A globo omitiu, mas o anúncio para a casa sobre a desistência de Tiago falou “o jogo é para os fortes”, como se desistindo ele estivesse sendo fraco. “Ah, mas tem um monte de gente que sofre opressão lá dentro e ainda estão lá!”. E cada um sabe o que consegue aguentar. Aí quando acontece algo, é sempre em tom de surpresa, como se depois de muita exclusão ainda tivéssemos que permanecer ali, aguentando. Como se isso não nos afetasse. Foi isso que me engatilhou na cena pós-desistência do Tiago, com todo mundo em choque e chorando na sala depois de terem colocado o próprio como alvo no jogo, nesse grande entretenimento através da tortura psicológica e do sofrimento que o bbb produz.

E eu só tô escrevendo isso aqui, pra contar que só estou aqui porque faço muita terapia, há vinte anos, e pude ter o privilégio, dentro de uma sociedade que só nos ensina a nos odiar o tempo inteiro, de entender que eu não precisava ser quem as pessoas esperavam, e que tinha todo o direito de amar o meu corpo exatamente do jeito que ele era. Mesmo que ele fosse gordo. Então esse texto não é pra quem acompanha o bbb arduamente e está fazendo memes com o “personagem” de Tiago. Eu não quero saber o que você acha dele, ou o que achou de sua desistência. Esse texto é pra quem ainda quer morrer por ser gordo, pra quem ainda não consegue se amar e pra quem ainda se sente sem lugar no mundo. “

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